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O ENSINO DE DESENHO NO INSTITUTO PROFISSIONAL FEMININO ORSINA DA FONSECA: OS LIVROS DE LUIZ DUMONT.

DRAWING’S TEACHING AT PROFESSIONAL FEMALE INSTITUTE ORSINA DA FONSECA: THE BOOKS BY LUIZ DUMONT, 1913.

Jorge Alexandre dos Santos Gaspar
Centro Universitário Celso Lisboa, Brasil
Lucia Maria Aversa Vilela
Universidade Severino Sombra, Brasil

REAMEC – Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática

Universidade Federal de Mato Grosso, Brasil

ISSN-e: 2318-6674

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 2, núm. 1, 2014

revistareamec@gmail.com



DOI: https://doi.org/10.26571/2318-6674.a2014.v2.n1.p60-76.i5296

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Resumo: Neste artigo tratamos o ensino de desenho na escola primária, nas primeiras décadas do Brasil República. Utilizamos como pano de fundo o Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca, no Rio de Janeiro e a obra de Luiz Dumont, de 1913. Durante este período histórico, foram publicadas algumas legislações que tratavam do ensino primário, das quais destacamos o Decreto 981 (BRASIL, 1890) que aprovava o regulamento da instrução primária e secundária no Distrito Federal, o Decreto 844 (BRASIL, 1901) que regulava o ensino primário do Distrito Federal e o Decreto 282 (BRASIL, 1902) que regulava o ensino profissional. A partir da base teóricometodológica da História Cultural, articulou-se o cruzamento de vestígios obtidos majoritariamente nestas legislações e na obra do Professor Luiz Dumont, objetivou-se localizar a importância do desenho escolar como componente das propostas curriculares do ensino primário naquele período.

Palavras-chave: História das disciplinas escolares, ensino primário, desenho escolar.

Abstract: In this paper we deal with the Drawing‘s teaching in primary school in the early decades of Brazil Republic. We use the backdrop of the Female Professional Institute Orsina da Fonseca, in Rio de Janeiro and the books by Luiz Dumont, from 1913. During this historical period were published some laws that dealt with the teaching in primary school, of which we highlighted the Decret 981 (BRAZIL, 1890) which approved the regulation of primary and secondary education in the Distrito Federal, the Decret 844 (BRAZIL, 1901) that ruled the elementary school in the Distrito Federal and the Decret 282 (BRAZIL, 1902) that ruled the professional education. From the theoretical and methodological basis of Cultural History was articulated the crossing traces obtained mostly in these laws and on the writings of Professor Luiz Dumont, as objective to find the importance of school drawing as a component of the primary school curriculum proposals in that period.

Keywords: School subjects‘ history, elementary school, drawing school.

1. INTRODUÇÃO

O texto que se segue teve por base a pesquisa de mestrado ―O Desenho Escolar no Rio de Janeiro: uma história de 1890 a 1964‖ (GASPAR, 2014), realizada pelo primeiro autor e que contou com apoio financeiro do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa 2012 pela Fundação Biblioteca Nacional, tendo sido orientada pela segunda autora.

Neste artigo tratamos o ensino de desenho na escola primária nas primeiras décadas do Brasil República. Utilizamos como pano de fundo o Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca, no Rio de Janeiro e a obra de Luiz Dumont, de 1913. Durante este período histórico, foram publicadas algumas legislações que tratavam do ensino primário, das quais destacamos o Decreto 981 (BRASIL, 1890) que aprovava o regulamento da instrução primária e secundária no Distrito Federal, o Decreto 844 (BRASIL, 1901) que regulava o ensino primário do Distrito Federal e o Decreto 282 (BRASIL, 1902) que regulava o ensino profissional. A partir da base teórico-metodológica da história cultural, articulou-se o cruzamento de vestígios obtidos majoritariamente nestas legislações e na obra do Professor Luiz Dumont, objetivando-se localizar a importância do desenho escolar como componente das propostas curriculares do ensino primário naquele período.

2. REFERENCIAIS TEÓRICOS

Desenvolvemos pesquisas em história da educação matemática tomando por base os referenciais teórico-metodológicos da história cultural. Sabedores de que ―o presente está cheio de passados sedimentados ou emaranhados‖ (CHARTIER, 2008, p. 15) e de que ―a história deve assumir diretamente sua própria responsabilidade: tornar inteligíveis as heranças acumuladas e as descontinuidades fundadoras que nos têm feito o que somos‖ (p. 18), consideramos que ―o trabalho histórico se caracteriza pela determinação de lugares de pertinências. [...] Ele se aplica, pois, em mostrar as relações entre os produtos e os lugares de produção (CERTEAU, 2008, p. 109).

3. MATERIAIS E MÉTODOS

Para Certeau, ―em história, tudo começa com o gesto de separar, de reunir, de transformar em ―documentos‖ certos objetos distribuídos de outra maneira. Esta nova distribuição cultural é o primeiro trabalho. Na realidade ela consiste em produzir tais documentos‖ (2008, p. 81). Isto implica em amalgamar em um processo o que em outros campos de pesquisa são considerados como materiais e métodos: na produção da história da educação matemática, com as concepções que utilizamos, é impossível dissociarmos teoria e métodos e optarmos, como Valente (2007) pelo uso da expressão base teórico-metodológica.

4. RESULTADOS E DISCUSSÃO

Nosso objetivo era localizar historicamente o lugar ocupado pela componente desenho nas propostas curriculares que circularam no ensino primário do Distrito Federal nas primeiras décadas do Brasil República.

Quando, em 15 de novembro de 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca e seus aliados colocaram fim à monarquia no Brasil com um governo provisório iniciou-se o período republicano. Deodoro esteve à frente do governo de 1889 a 1891.

Em 19 de abril de 1890, através do Decreto 346, criou-se a ―Secretaria de Estado dos Negocios da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos‖, e Benjamin Constant Botelho de Magalhães, que era então o Ministerio da Guerra, passou a ocupar a nova secretaria. Sobre sua responsabilidade, em 8 de novembro do mesmo ano, foi publicado o Decreto 981 (BRASIL, 1890), que aprovava o regulamento da instrução primária e secundária no Distrito Federal. Através deste, dividia-se a escolarização em escola primária de primeiro grau, escola primária de segundo grau e ensino secundário (BRASIL, 1890, Art. 1º e 2º), subdividindo o ensino primário de primeiro grau em três cursos e o de segundo grau, em três classes (BRASIL, 1890b, Art. 3º e 4º) e atribuiu-se aos formandos da Escola Normal o exercício do magistério público de primeiro grau (BRASIL, 1890, Art. 14).

Em relação ao ensino de desenho, vê-se no Decreto 981, de 1890, que ele se fazia presente em todo o ensino primário de primeiro grau e de segundo grau, bem como durante o curso da Escola Normal. Os professores deveriam ser formados pela Escola Normal para assumirem as turmas, mas enquanto não existissem professores suficientes, escolas poderiam dividir o mesmo professor desta área do conhecimento. Os exames aplicados em desenho deveriam ser práticos.

4.1. O ENSINO PRIMÁRIO E OS INSTITUTOS PROFISSIONAIS NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO BRASIL REPÚBLICA.

Os institutos profissionais no Rio de Janeiro tiveram suas fundações iniciadas a partir do século XIX e se firmaram nas primeiras décadas do século XX. No caso dos meninos, estas instituições serviam para formação de uma mão de obra mais qualificada para a sociedade republicana e, no caso das meninas, para formação doméstica. Por isso, segundo Bonato (2001), encontramos algumas escolas públicas para a formação profissional de meninos[3] e de meninas[4]. Assim, ainda de acordo com a autora, nas escolas e institutos femininos haviam oficinas de costura, bordados e renda, luvas e gravatas, malharia, flores e chapéus, seção doméstica, lavagem e engomado, cozinha, arranjos e serviços caseiros e nos institutos masculinos eram oferecidas as seções de palha, vime e bambu, couro, madeira, metal, agricultura, pedra, tijolo e cimento, folha de metal, pintura, pequena mecânica de precisão e eletrotécnica.

Em dezembro de 1901 o ensino primário do Distrito Federal foi regulamentado. No artigo 1º ficava estipulado que o ensino primário estaria dividido em ensino primário, ensino normal e ensino profissional e artístico.

  1. Art. 1º. O ensino publico municipal no Districto Federal compreende:

    a) ensino primario;

    b) ensino normal;

    c) ensino profissional e artistico.

    §1º. O ensino primario será dado em jardins de infancia e escolas primarias.

    §2º. O ensino normal será dado na Escola Normal e no Pedagogium, estabelecimentos destinados á formação e aperfeiçoamento de professores para o ensino nas escolas publicas.

    §3º. O ensino profissional será dado nos seguintes estabelecimentos:

    Um Instituto Commercial.

    Dous Institutos Profissionaes.

    A Casa de São José.

    (BRASIL, Decreto 844, de 19/12/1901, Art. 1º)

Menos de três meses depois surgia a regulamentação para o ensino profissional no Distrito Federal (BRASIL, Decreto nº 282, de 27 de Fevereiro de 1902). Nesta legislação, foram indicados os locais onde seriam ministrados os cursos profissionais. As matrículas para os institutos femininos eram dedicadas às meninas de oito a quinze anos, que não apresentassem moléstias graves, dando-se prioridade as meninas órfãs de pai e mãe, órfãs de pai, órfãs de mãe e filhos de funcionários municipais.

Para os institutos profissionais femininos, de acordo com artigo 5º, o ensino profissional deveria ser ministrado nos cursos elementar, médio e complementar das escolas primárias, destacando que:

  1. c) O ensino de artes comprehenderá:

    Desenho á mão livre;

    Desenho geométrico applicado ás artes;

    Desenho de ornato applicado ás indústrias[5];

    Musica vocal e notação escripta; gymnastica.

    (BRASIL, Decreto 282, de 22/02/1902, art. 5)

Os cursos oferecidos nos institutos profissionais tinham sua carga horária assim dividida:

  1. Gymnastica ............................................................. 6 horas por semana

    Aula primária ........................................................ 12 horas por semana

    Desenho .............................................................. 9 horas por semana [6]

    Hygiene profissional .............................................. 2 horas por semana

    Musica .................................................................... 5 horas por semana

    Economia domestica .............................................. 2 horas por semana

    Stenographia e Dactyligraphia ............................... 4 horas por semana

    Officinas ............................................................... 13 horas por semana

    (BRASIL, Decreto 282, de 22/02/1902, art. 17)

Observando estes dois artigos, percebe-se o papel significativo atribuído ao ensino de desenho por esta legislação, destacando-se a carga horária atribuída ao desenho em detrimento dos outros cursos (sabendo que as aulas primárias corresponderiam às aulas de matemática e da língua materna, as aulas de desenho teriam carga horária maior do que estas).

4.2. O INSTITUTO PROFISSIONAL FEMININO ORSINA DA FONSECA.

O Instituto Profissional Feminino, criado em 1897, foi inaugurado em 1898 e, ao longo de sua existência passou por vários locais diferentes, mas sempre na Tijuca, bairro da zona norte carioca. Em 1912, o instituto passou a se chamar Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca, em homenagem à recém-falecida esposa do presidente da república, Marechal Hermes da Fonseca.

 Instituto
Profissional Feminino Orsina da Fonseca, no Rio de Janeiro (1910)[7]
Figura 1
Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca, no Rio de Janeiro (1910)[7]

Em 1916, o Instituto criou o curso Comercial e, em 1918, a direção foi dividida em duas seções: internato e externato. O externato daria origem, em 1919, à Escola Profissional Paulo de Frontin, com 431 alunas matriculadas (BONATO, 2001 p. 4).

Oficina de
Costura no Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca (s/d)[8]
Figura 2
Oficina de Costura no Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca (s/d)[8]

Em 1928, segundo Bonato (2001), a Reforma Fernando Azevedo mudou a orientação das escolas profissionais femininas com o propósito de aperfeiçoar o funcionamento de todo o sistema escolar do Distrito Federal através das ideias da Escola Nova. Assim, em 1930 e em função das reformas, o Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca passava a ser chamado de Escola Técnica Secundária Orsina da Fonseca.

Fachada
atual da Escola Municipal Orsina da Fonseca (s/d)[9]
Figura 3
Fachada atual da Escola Municipal Orsina da Fonseca (s/d)[9]

A escola manteve-se como internato profissionalizante exclusivamente feminino até os anos 60, quando passou a se chamar Ginásio Estadual Orsina da Fonseca, sendo este de natureza mista. Nos dias atuais, funciona como Escola Municipal Orsina da Fonseca.

4.3. A Coleção de Luiz Dumont

Luiz Dumont foi professor de artes aplicadas do Instituto Profissional Orsina da Fonseca, professor de desenho da Escola Profissional Rivadavia Correa e professor primário de desenho do Asylo Gonçalves de Araújo. Em 1913 publicou sua coleção formada por três livros, sendo um para cada série do curso primário. Os livros desta coleção têm dimensões de 20 cm por 15 cm, aproximadamente e com uma característica relacionada à sua impressão: as cores utilizadas nos textos, sendo o primeiro guia impresso na cor vermelha; o segundo, na cor marrom e o terceiro, na cor azul. Outra característica desta obra é que ela se refere à destinação da obra: os três guias são destinadas a classes com cinquenta alunas.

Capas das
obras de L. Dumont para escolas profissionais femininas (1913)
Figura 4
Capas das obras de L. Dumont para escolas profissionais femininas (1913)

A obra de Dumont tratava em seu primeiro guia da morfologia geométrica e da inscrição de polígonos à mão livre; o segundo guia, que trabalhava com as meninas o desenho ambidestro, referia-se à morfologia alfabética, com o traçado de letras e algarismos e morfologia botânica, onde se trabalhava a representação de elementos vegetais. O terceiro guia foi dedicado ao desenho de perspectiva de observação, partindo de desenhos e exercícios de memória a exercícios de perspectiva de observação e sombras.

4.3.1. O primeiro guía

O primeiro guia destinava-se ao estudo da morfologia geométrica e dos polígonos. A obra começava com o prólogo escrito pelo Dr. Francisco Cabrita[10]. Nele, Cabrita, citando Ernesto Bersot, diretor da Escola Normal de Paris, falava que o crescimento do desenho na França era ―[...] objecto de primeira necessidade‖. Ainda neste parágrafo, Cabrita destacava que ―[...] é ao desenho (e por que não dizer somente ao desenho?) que a grande República Americana deve a sua opulenta prosperidade, a sua proeminência no mundo das indústrias‖ (CABRITA in DUMONT, 1913a, p. 3).

Francisco Cabrita destacava que na França ―[...] desde Rousseau (1762), que se vem firmando a importância da cultura do desenho na educação do povo‖. Destacava que, por muito tempo, o ensino de desenho baseou-se no Método Guillaume[11], que o consideraba como ciência, tendo por base as leis da geometria e que colocava o gosto artístico em segundo plano.

O texto prossegue destacando que na ―escola do povo‖, o desenho geométrico estava cedendo espaço para o desenho à mão livre, ―[...] baseado na observação direta da natureza, na ornamentação vegetal com a devida estylização dos seus contornos, e nos fundamentaes que nos têm fornecido todas as artes referentes á manifestação da fórma em suas relações com o sentido da vista‖ (CABRITA in DUMONT, 1913a, p. 4).

Assim, Cabrita continuava seu prólogo enfatizando que na França, o desenho era um meio intuitivo e natural para as crianças exprimirem o que imaginavam ou representarem o que viam. Afirmava que assim, a escola popular francesa passou a ver, com maior preocupação, a necessidade de que o aluno desenhasse. Afirmava que este método seria adequado à escola primária, mas que no ensino profissional, o ensino deveria ―[...] ser orientado, tal como entende o professor Dumont neste livro e como tive ocasião de vêr e admirar em suas bem disciplinadas aulas no Instituto Orsina da Fonseca‖. O método aplicado por Dumont baseava-se na Geometria,

[...] mas não basta que o alumno aprenda a desenhar as fórmas geométrica; cumpre, outrosim, que, ao encertar o desenho dos objectos naturaes e artificiaes, saiba estudal-os e reconhecer a fórma geométrica, a que se prende a sua fórma particular. Determinada a fórma geométrica, então, guiado por ella, lhe será possível desenhar a fórma específica (CABRITA in DUMONT, 1913a, p. 5)

Cabrita afirmou que a caligrafia seguia para o grupo das artes absolutas, enquanto o desenho deveria ser um instrumento de utilidade prática, inteligível, e que todos deveriam ser capazes de manejar, traduzindo assim com precisão o pensamento. Assim, o desenho deveria ser ensinado ―[...] a tempo fixo e libertado das peias, que lhe impoem o rigor geométrico, a precisão das linhas e a pureza do claro-escuro ou a transparencia do colorido‖ (CABRITA in DUMONT, 1913a, p. 5). Assim, ele afirmava que a presente obra dedicava-se ao ensino profissional do sexo feminino, sendo recomendada também pelo trabalho com o desenho de memória e do desenho ditado, que tinha, segundo o autor, vantagens para o desenvolvimento intelectual do aluno. Completando este prólogo, Cabrita teceu comentários sobre próximo volume que o professor Dumont lançaria e que se referiria ao desenho ambidestro.

Após este prólogo, o livro se iniciava com algumas notas sobre como as cinquenta alunas deveriam proceder durante o curso de setenta horas. Observa-se que, nestas notas, as atividades, a serem realizadas no quadro negro, deveriam ser identificadas pelo número correspondente da chamada. Quando a aluna utilizasse o papel, o uso de borrachas deveria ser desencorajado, sendo punida com perda de pontos, inclusive. Além disto, no primeiro trimestre, as alunas teriam à disposição somente lápis, caderno com folhas sem pauta e uma tábua com lixa.

O livro dedicava-se, então, à morfologia geométrica. Para Dumont, o sentido mais importante era a visão e, em sua primeira atividade, as alunas eram levadas a uma sala sem móveis para testarem a diferença entre ―olhar‖ e ―ver ou observar‖. Segundo o autor, olhar institivamente é apenas ―olhar‖, enquanto olhar inteligentemente é ―ver ou observar‖. Após retornarem deste local, as alunas recebiam uma folha com a seguinte pergunta: ―como eram as cortinas desta sala que acabaram de deixar?‖. Foram dadas as seguintes respostas: 17 tinham visto cortinas brancas com listras, 19 tinham visto cortinas brancas com listras encarnadas, 9 tinham visto cortinas brancas com entremeio de renda e 5 tinham visto cortinas com listras azuis em xadrez. Segundo o autor, não havia cortinas naquela sala. Assim, segundo Dumont, a aluna que estivesse habituada ao desenho, não iria recorrer à imaginação para responder a pergunta, visto que elas responderiam o que inteligentemente tivessem observado. Para o autor, desenhar era unir o trabalho inteligente do cérebro com o trabalho mecânico e instintivo dos olhos.

O livro seguia com o estudo das linhas, a partir de exemplos concretos. O professor iniciava a próxima atividade, chamando ao quadro negro as alunas. Antes das alunas irem ao quadro, o professor faria passar entre elas uma fita métrica para que medissem o tamanho do palmo, a fim de que tivessem a sua unidade de medida em centímetros. As tarefas seriam em centímetros, mas as alunas utilizariam o palmo para medir. As atividades começavam com um exercício ditado e, a partir deste, seriam levantadas as definições necessárias para o desenho, tais como, as de linhas paralelas, de linhas perpendiculares. Ao final do capítulo sobre as linhas eram feitas às alunas uma série de questões referentes à observação da vida diária, para que relacionassem o que estudaram em aula com as suas próprias visões de mundo.

O próximo capítulo referia-se aos ângulos. Começava com a definição de ângulo, dos elementos que formavam o ângulo, da classificação de alguns ângulos e da bissetriz. Nos exercícios ditados desta unidade, as alunas foram instruídas a medir os ângulos através de um processo que consistia em completar o ângulo reto e, a seguir, determinar em quantas partes esse ângulo construído equivaleria de um ângulo reto. As respostas eram dadas em frações do ângulo reto.

Na sequência, a obra de Dumont abordava os polígonos. Nesta parte, o autor indicava que primeiro o professor deveria ir ao quadro e fazer desenhos dos principais polígonos, e em seguida, começasse pelo estudo dos triângulos. Assim, deveria chamar suas alunas ao quadronegro e instruí-las a traçar triângulos e indagá-las sobre as características destes desenhos, construído assim as classificações tanto em relação aos ângulos internos quanto às medidas dos lados.

Dando seguimento, seriam estudados os quadriláteros. Neste tópico foram feitas as classificações e mostradas as figuras, sendo trabalhadas algumas características do quadrado, tal como a diagonal ser a bissetriz dos ângulos retos que formavam o quadrado. Seguiam-se exercícios ditados que utilizavam o quadrado como figura base. Os outros quadriláteros não eram cogitados em exercícios.

Na sequência da obra, Dumont trabalhou com as linhas curvas e encaminhou o seu estudo para os polígonos inscritos. As alunas iriam conhecer as linhas curvas e depois iriam praticar a construção de circunferências no quadro negro e no caderno. Elas deveriam se postar de forma oblíqua ao quadro e realizar movimentos circulares, repetindo o movimento até que fosse considerado bom pelo professor. Quando o traçado fosse feito no papel, as alunas iriam construí-las a partir de 4, 8 ou 16 pontos equidistantes. Seguindo estas instruções, eram realizados exercícios ditados.

Construção
de circunferências de acordo com Dumont (1913a, p. 71)
Figura 5
Construção de circunferências de acordo com Dumont (1913a, p. 71)

O próximo tópico foi o estudo dos polígonos inscritos e, dentre eles, o primeiro foi o hexágono. Na ordem, foram estudadas outras figuras inscritas: o triângulo equilátero, o quadrado, o decágono, o pentágono, o heptágono, o octógono, o eneágono e, por fim, o dodecágono. Todas as construções eram exemplificadas e, ao final, eram realizados exercícios ditados. Por fim, Dumont apresentava ao professor a distribuição da carga horária do curso para o primeiro guia.

4.3.2. O SEGUNDO GUIA

O segundo guia escrito por Dumont era dedicado ao desenho ambidestro, que o professor Cabrita, no primeiro guia, tanto enfatizou ao final do seu prólogo, e à morfologia alfabética e biológica.

Gravura com
o exemplo de desenho ambidestro
Figura 6
Gravura com o exemplo de desenho ambidestro
DUMONT 1913b, p. 7

Começava pelas notas que indicavam o procedimento nas aulas, seguida de uma gravura (figura 6) que indicava como as alunas deveriam realizar os seus desenho no quadro negro.

Este guia começava destacando a importância do desenho geométrico, trabalhado no guia anterior, e propunha-se a desenvolver os traçados de linhas e, em seguida o traçado de letras com as duas mãos.

O autor advertia as alunas com relação ao processo a ser desenvolvido, encorajando-as a refletirem sobre as ações a serem realizadas ainda na etapa do ―desenho mental‖. A seguir, a partir o traçado de raízes, o livro tratava da morfologia biológica. Trazia uma explicação biológica sobre as raízes e bulbos. A seguir, a obra de Dumont propunha o estudo dos caules, ramos, folhas e flor. O autor fazia uma comparação do crescimento do caule com o do ser humano,. Ainda nesse texto, Dumont diferenciava os tipos de caule e as ramificações de uma árvore ou de um arbusto.

Ao final deste volume, Dumont afirmava que o professor deveria ter certeza de que, a partir dos resultados obtidos, as alunas adquiririam duas qualidades importantes para o trabalho, que eram a prudência e a decisão. Além disto, era permitido ao avaliador, a partir dos resultados, conhecer sobre a personalidade das alunas. Por fim, o livro trazia um plano de curso para as setenta horas de trabalho com as alunas.

4.3.3. O TERCEIRO GUIA

O terceiro guia da coleção de Dumont era dedicado ao estudo da perspectiva de observação. Neste livro, além do conteúdo trabalhado, o autor ainda propunha uma forma de avaliar as turmas, com um modelo de planilha avaliativa para cada aluna e trazia fotos com aspectos das salas de aula para cada série abordada nos guias.

Assim, a obra começava, como os guias anteriores, pelas notas iniciais, onde dissertava sobre a dificuldade de se trabalhar com perspectiva, colocando o tamanho da sala de aula como principal impecílio. O autor afirmava que utilizaria pequenos aparelhos para fazer as demonstrações necessárias durante o curso.

Logo a seguir, o professor Dumont, apresentava exemplos de observação em que a aluna utilizava réguas para iniciar a observação de outros elementos, como pode-se ver no exempo a seguir.

Utilização
da régua como instrumento auxiliar para as noções de perspectiva de observação
(DUMONT – 1913c, p. 9)
Figura 7
Utilização da régua como instrumento auxiliar para as noções de perspectiva de observação (DUMONT – 1913c, p. 9)

Na sequencia do texto temos uma afirmação importante em relação aos conteúdos de perspectiva. O autor concluia, junto com as alunas, que a distância influia no tamanho das dimensões observadas. Assim ficava explicada, a partir deste e de outros exemplos propostos pelo professor Dumont, a proporcionalidade dos segmentos que estavam representados pelo objeto real e a marcação feita na régua que a aluna segurava. A partir desta conclusão, o livro aprofundava esta noção, trabalhando com outros elementos, tais como vaso, quadrados e círculos em diversas posições, caixas e bancos. Também eram exigidos das alunas desenhos de mémória de vasos e a utilização de noções de luz e sobras para dar a ideia de profundidade aos objetos.

Alunas
realizando tarefa no quadro negro (DUMONT – 1913c, p.187)
Figura 8
Alunas realizando tarefa no quadro negro (DUMONT – 1913c, p.187)

Disposição
da sala de aula para as turmas do terceiro ano (DUMONT – 1913c, p.189)
Figura 9
Disposição da sala de aula para as turmas do terceiro ano (DUMONT – 1913c, p.189)

No final do livro encontrava-se o plano de curso, com a distribuição das setenta horas dedicadas ao seu desenvolvimento e uma forma de realizar as avaliações para esta proposta de curso, incluindo aí, uma tabela de notas de cada aluna e fotos das salas de aula do Instituto Orsina da Fonseca, como vemos nas figuras 8 e 9.

5. CONSIDERAÇÕES

O livro de Luiz Dumont é uma obra que atendia às necessidades propostas às escolas profissionais femininas de então, pois estava de acordo com a legislação vigente - Decreto 844, de 19 de dezembro de 1901 e Decreto 282, de 27 de fevereiro de 1902: essa modalidade de ensino compreendia os cursos elementar, médio e complementar e se propunha a dar uma formação para o mercado de trabalho, mas que também era útil à formação para o lar. Nesse aspecto, o livro de Dumont oferecia às alunas a possibilidade de trabalhar com desenho à mão livre, em seus três volumes, e com desenho geométrico aplicando às indústrias, quando trabalhados os conteúdos do segundo e do terceiro anos.

Nos três guias, o autor incentivava as construções à mão livre, com ênfase na morfologia geométrica, em especial no primeiro guia. No segundo guia, que era dedicado ao estudo da morfologia botânica, as construções tinham como base a morfologia geométrica que tinha sido trabalhada no ano anterior, mostrando a aplicabilidade dos elementos geométricos nas construções de elementos do mundo. Já o terceiro guia, cujo tema principal era a perspectiva de observação, trabalhava a visão de mundo através da leitura de elementos do dia a dia: neste guia, podemos ver a aplicação desta visão nas reproduções de vasos e outros elementos do entorno de seu mundo.

As fotos presentes no terceiro guia mostram a disposição das salas de aula. Nestas fotos podemos ver que essa disposição assemelhava-se à das salas de aula atuais, excetuandose a arrumação da sala referente ao terceiro guia. Em relação ao espaço físico das salas de aula foi observado o fato de que estas deveriam ter um tamanho definido para que as aulas fossem desenvolvidas de forma a se obter a melhor aprendizagem. Esta situação foi descrita no terceiro guia na forma de nota, logo no início do livro.

Esta obra de Dumont tem sua importância por causa da sua aplicabilidade e da preocupação em orientar a prática pedagógica junto às alunas do Instituto Profissional Orsina da Fonseca. As tarefas indicadas nos livros propunham que as educandas praticassem as representações à mão livre e que tal formação as levaria a uma movimentação manual que as induziria a um exercício inicial da escrita[12], o que facilitaria a alfabetização dessas moças.

Além disso, as aulas de desenho tinham por objetivo qualificar as alunas para o mercado de trabalho[13]. Tanto o comércio quanto a indústria tinham interesse em utilizar esta mão de obra qualificada, vinda da escola, para a construção de ornatos, construções de elementos decorativos e modelagem e costura, dentre outras possibilidades.

REFERÊNCIAS

BONATO, Nailda Marinho da Costa. O Instituto Profissional Feminino no Rio de Janeiro republicano: a formação de mão-de-obra nas primeiras décadas do século XX. In Diálogos Revista Electrónica de Historia, Anais do V Congreso Iberoamericano de la Historia de la Educación Latinoamericana, 2001. Disponível em http://www.historia.fcs.ucr.ac.cr/congred/brasil/ponencias/da%20costa_bonato.doc. Acesso em fev de 2014.

BRASIL. Decreto 346, de 19 de abril de 1890. Crêa a Secretaria de Estado dos Negocios da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/116785. Acesso em set de 2013.

BRASIL. Decreto 981, de 8 de novembro de 1890 – Approva o Regulamento da Instrucção Primaria e Secundaria do Districto Federal. Coleção de Leis do Brasil – 1890, fascículo XI, p. 3474. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/124972. Acesso em jun de 2013.

______. Decreto 844, de 19 de dezembro de 1901 – Regula o ensino primario do Districto Federal. Diário Oficial da União, . Disponível em https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/124607. Acesso em out de 2014.

______. Diário Oficial da União. Decreto 282, de 27/02/1902 – Dá regulamento ao ensino profissional. Districto Federal. Disponível em https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/116987. Acesso em out de 2013.

CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes; revisão técnica de Arno Voguel; 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.

CHARTIER, Roger. Escuchar a los muertos com los ojos. Lección inaugural em el Collège de France. Traducido por Laura Fólico. Buenos Aires/ Madrid: Katz Editores, 2008.

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Notas

[3] Os Institutos Profissionais Masculino João Alfredo e Ferreira Viana e a Escola Visconde de Mauá.
[4] Instituto Profissional Feminino Orsina da Fonseca e as escolas profissionais para o sexo feminino Rivadávia Correa, Paulo de Frontin e Bento Ribeiro.
[5] Grifo dos autores
[6] Grifo dos autores
[10] Lente da Escola Polytechnica e da Escola Naval e ex-diretor da Instrucção Pública Municipal.
[11] Claude Jean Baptiste Guillaume (1880-1905). Segundo Zuin (2003), como membro da comissão para a reforma do ensino de Desenho na França, em 1866, Guillaume propôs e introduziu nas escolas francesas, um método baseado na resolução gráfica de problemas clássicos da geometria, com utilização dos instrumentos de Desenho. Este método influenciou outros países, inclusive o Brasil.
[12] Estas instruções eram indicadas desde o Império. Veja-se o Art. 46, §3º, da Decisão Imperial 77, de 6/11/1883.
[13] Decreto 844, de 19/12/1901 e Decreto 282, de 27/02/1902.

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