Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p.01-170, jan.-abril.2018.
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Um estudo filológico-ortográfico da Língua Portuguesa em Goiás:
variações vocálicas e consonantais no Livro de Notas 02 (Jataí-GO)
A Spelling-Philological Study of the Portuguese Language in
Goiás: Consonantal and Vocalic Variations in Livro de Notas 02
(Jataí-GO)
Carolina Faleiros Felício
Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão
Vanessa Regina Duarte Xavier
Universidade Federal de Goiás/Regional Catalão
Resumo
Nesta investigação, parte-se da premissa de que, a partir do estudo filológico, pode-se observar e analisar a
ortografia da Língua Portuguesa em uso em Goiás no final do século XIX. O objeto de estudo é o Livro de Notas
2 (1876-1877), que se encontra sob a guarda do Cartório do Tabelionato de Notas da cidade de Jataí-GO. Os
principais objetivos foram caracterizar e analisar as variações grafemáticas encontradas no corpus, investigando
se em tais variações uma tendência à uniformização ou à pluralidade na escrita da época. Primeiramente, foi
feita uma revisão da edição do corpus, conservando a escrita legítima da época; logo em seguida, foram coletados
todos os vocábulos que apresentassem algum tipo de variação grafemática vocálica ou consonantal – “a” por “e”,
“e” por “i”, “i” por “e”, “o” por “u”, “u” por “o”, “u” por “i”; ditongos nasais finais, letras ramistas, semivogais,
variações gráficas entre “s”, “z”,c”, “s” e “ç”, uso do “h” em contextos diversos do atual, consoantes geminadas,
consoantes duplas em palavras de origem latina –, que totalizaram quinhentos e quarenta e nove (549) vocábulos.
Após a coleta, foram realizadas as análises destes, que demonstraram maior tendência à regularidade do que ao
caos linguístico.
Palavras-chave: ortografia, filologia, história da língua.
Abstract
In this research, we start from the premise that, from a philological study, it is possible to observe and analyze the
spelling of the Portuguese Language in use in Goiás at the end of the 19th century. The object of study is the Livro
de Notas 2 (1876-1877), which is under the custody of the 1st Notary Registry Office in the city of Jataí-GO. The
main objectives were to characterize and analyze the graphematic variations found in the corpus, investigating
whether there is a trend towards uniformity or plurality in the writing of that time. Firstly, a revision of the edition
of the corpus was made, preserving the legitimate writing of that time; then, all the words that presented some
kind of vocalic or consonantal graphematic variation were collected, “a” for “e”, “e” for “i”, “i” for “e”, o” for
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“u”, “u” for “o”, “u” for “i”; final nasal diphthongs, ramistic letters, semivowels, graphematic variations among
“s”, “z”, “c”, “s” and “ç”, the use of “hin different contexts from the present one, geminate consonants, double
consonants in words from Latin–, which added up to five hundred and forty-nine (549) words. After gathering
those items, were analyzed them, and they showed greater tendency to regularity than to linguistic chaos.
Keywords: spelling, philology, history of the language.
Resumen
En esta investigación, si parte de la ideia de que a partir del estudio filológico, puede observar y analizar la
ortografía de la lengua portuguesa en uso en el estado de Goiás en el final del siglo XIX. El objeto de estudio es
el Libro de las Notas 2 (1876-1877), que se encuentra bajo la custodia de las notas de registro de la ciudad de
Jataí-GO. Los principales objetivos fueron caracterizar y analizar las grafemáticas variaciones encontradas en el
corpus, investigando si existen en dichas variaciones una tendencia a la uniformidad o a la diversidad en la
escritura del tiempo; En primer lugar, se hizo una revisión de la edición del corpus, conservando la legítima
escritura del tiempo; poco después, fueron recogidos todos los vocábulos que presentaran algún tipo de variación
grafemática vocálica o consonántica – la “apor “e”, “epor “i”, “ipor “e”, “opor “u”, “upor “o”, “upor
“i, los finales de diptongos nasales, letras ramistas, planeos, variaciones gráficas entre “s”, “z”, “ce ç”, uso del
“hen los contextos varios del actual, consonantes hermanadas, consonantes dobles en palabras de origen latina
, que ascendieron quinientos cuarenta y nueve (549) palabras. Después de la colección, realizaron los analisis,
que demostraron una mayor tendencia a la regularidad que al caos linguístico.
Palabras-clave: ortografia, filología, historia de la lengua.
Introdução
Neste texto, apresentam-se resultados de pesquisa realizada no âmbito da Filologia
1
,
campo de investigação que abrange os estudos voltados para todos os tipos de documentos
antigos, com diversos fins, seja para conhecer a história de um povo, obter informações de
determinada época ou estudar uma língua. Assim sendo, importa informar que este trabalho se
situa na área dos estudos linguísticos. De modo específico, fez-se um estudo da ortografia da
Língua Portuguesa em uso em Goiás no final do século XIX.
Para tanto, tomou-se como objetivo de análise o Livro de Notas 2 (1876-1877), o qual
encontra-se sob a guarda do Cartório do Tabelionato de Notas da cidade de Jataí-GO e contém
escrituras, procurações, posses de terra, registro de dívidas, pagamentos, dentre outros. A partir
do estudo filológico, buscou-se observar e analisar a ortografia da Língua Portuguesa em uso
em Goiás no final do século XIX, a qual sofreu várias modificações até chegar à forma como é
aceita atualmente pela norma dita padrão.
Relativo aos objetivos dessa pesquisa, estes consistiram em caracterizar e analisar as
1
O conceito de Filologia que mais se aproxima do trabalho aqui realizado é o apresentado por Almeida (2011, p. 1), em que:
“no sentido mais amplo (lato sensu), a filologia se dedica ao estudo da língua em toda a sua plenitude – linguístico, literário,
crítico textual, sócio-histórico etc. no tempo e no espaço, tendo como objeto o texto escrito, literário ou não-literário”. Além
disso, conforme ressalta Ximenes (2012), é possível conhecer o passado através de registros deixados pelas sociedades,
no que a Filologia tem um papel principal: “o resgate da produção textual de uma época que possibilita conhecer a história
da língua(XIMENES, 2012, p. 94).
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variações grafemáticas encontradas nos documentos em estudo, a fim de contribuir com o
estudo da Língua Portuguesa usada em épocas pretéritas. Ademais, teve-se como meta ainda,
com base em Toledo Neto (1999), investigar se nessas variações uma tendência à
uniformidade ou à pluralidade gráfica. Acerca disso, Cagliari (2005, p. 22) salienta que:
Como as línguas, as ortografias são dinâmicas, variam com o passar do tempo. Essa
variação e essa mudança ocorrem porque aparecem novos modismos ou por
ignorância de uso, que vai se generalizando. Depois de certo tempo, essas
modificações são incorporadas e passam a funcionar como qualquer outra forma
gráfica de sistema.
Segundo este autor, mesmo com a pluralidade da língua, não houve, em épocas
passadas, um caos na ortografia, como muitos do século XX acreditavam. Desta forma, Cagliari
(2015, p. 22), salienta que “é bem claro e possível estabelecer sistemas ortográficos coerentes
para períodos de tempo”. Desta maneira, intentou-se verificar se a ortografia presente nos
documentos seguiu determinados padrões ortográficos, aceitos tacitamente e que são peculiares
a cada época da história da língua.
1. Das bases teórico-metodológicas do trabalho
Para atingir os objetivos propostos, percorreu-se o seguinte caminho metodológico: i)
revisão da edição do Livro de Notas supracitado; ii) coleta de todos os vocábulos que
apresentaram algum tipo de variação grafemática e; iii) análise dos dados.
Na primeira etapa, realizou-se a revisão da edição do Livro de Notas 02, o qual se
encontrava editado de acordo com as Normas para Transcrição de Documentos Manuscritos
para a História do Português no Brasil”. Segundo Fachin (2009, p. 251) “os critérios de
transcrição utilizados para esse tipo de edição são elaborados com a intenção de conservar o
estado de ngua dos manuscritos, possibilitando, menos possível, a interferência do editor.”. O
caráter conservador desse tipo de transcrição fica nítido ao se observar suas normas, dentre as
quais destacamos três:
1. A transcrição será conservadora. […] 3. Não será estabelecida fronteira de palavras
que venham escritas juntas, nem se introduzirá hífen ou apóstrofo onde não houver.
[…] 7. Eventuais erros do escriba ou do copista serão remetidos para nota de rodapé,
onde se deixará registrada a lição por sua respectiva correção. (FACHIN,2009, p. 251).
Essas normas (no total são 16 critérios) possibilitam a oferta de edições fidedignas dos
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manuscritos, o que permite que estudos linguísticos como esse sejam realizados. Dando
sequência a pesquisa, selecionou-se os vocábulos que sofreram algum tipo de variação vocálica
ou consonantal. Acerca desses tipos de variações gráficas, Santos (2006, p. 128) afirma que:
Em relação à representação gráfica de segmentos e sequências vocálicas, levamos em
consideração as variações dos grafemas a por e, e por i, i por e, o por u, u por o, u
por i; dos ditongos nasais finais; das letras ditas ramistas (u e v, i e j, com valores
vocálicos); das semivogais. Sobre as representações gráficas das consoantes e das
sequências consonântais, observaremos as variações gráficas entre s,z / c,s e ç, z, as
variações no uso do h, das consoantes geminadas, uso de consoantes duplas em
palavras de origem latina, da formação de sílabas por metátese e hipértese.
Depois de coletar todos os vocábulos, organizou-se um Índice de Frequência e
Ocorrência, semelhante ao que foi organizado por Santos (2006). Esse índice contém
informações sobre a frequência dos vocábulos com variação grafemática, as formas variantes,
a quantidade de vezes em que apareceram e sua localização no documento, feita através do
recto (r.) e verso (v.) do fólio. Na sequência, procedeu-se à classificação dos vocábulos,
conforme apresentassem variações vocálicas e/ou consonantais e, então, em seus respectivos
subtipos, obedecendo-se à categorização proposta por Santos (2006) e explicitada acima.
Feito isso, iniciou-se a etapa de maior complexidade da pesquisa, a análise das
variantes grafemáticas, tendo como base o que dizem ortógrafos e gramáticos históricos sobre
a escrita da época. Um dos postulados de maior importância neste estudo é a classificação da
ortografia da língua portuguesa em períodos, feita por Coutinho (1976, p. 71-72):
93. PERÍODO FONÉTICO: começa este período com os primeiros documentos
redigidos em português e se estende até o século XVI. Apesar de certa flutuação que
se observa na grafia das palavras, a preocupação fonética transparece a cada momento.
A língua era escrita para o ouvido. 94. PERÍODO PSEUDO-ETIMOLÓGICO: Inicia-
se no século XVI e vai até o ano de 1904, em que aparece a Ortografia Nacional de
Gonçalves Viana. O que caracteriza este período é o emprego de consoantes
geminadas e insonoras, de grupos consonantais impropriamente chamados gregos, de
letras como o y, k e w, sempre que ocorriam nas palavras originárias. 95.PERÍODO
SIMPLIFICADO: Principia com a publicação da Ortografia Nacional de Gonçalves
Viana, em 1904, e chega até os nossos dias.
De acordo com o autor, no período fonético, os escritores e copistas tinham o objetivo
de facilitar a leitura, sendo assim, escreviam da forma mais próxima da língua falada. Por esse
motivo, “não havia um padrão uniforme na transcrição das palavras(COUTINHO, 1976, p.
72) e, assim, o vocábulo podia aparecer grafado de modo diferente, em um mesmo documento.
No período denominado pseudoetimológico, buscava-se respeitar a grafia etimológica
das palavras, o que fez com que o latim e o grego tivessem muita influência na ortografia da
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Língua Portuguesa. Nesse período, surgiram várias dúvidas em relação à escrita das palavras,
o que demandava do copista um conhecimento apurado acerca das palavras e de suas origens.
O período simplificado, por sua vez, teve seu início quando o governo português
percebeu a necessidade de uma ortografia uniforme, o que resultou na proposição de vários
acordos para se chegar a uma uniformização.
A partir da caracterização feita por Coutinho (1976) dos períodos da ortografia
portuguesa, pretendeu-se verificar se as variações grafemáticas revelavam a influência apenas
do período no qual se enquadram ou se haviam vestígios de outros períodos. Para tanto, foram
de grande valia as obras de Gonçalves Viana (1912) e Madureira Feijó (1861). Este por explicar
os usos de cada vogal e consoante do alfabeto. Aquele, por se tratar de uma obra do início do
séc. XX, período posterior à escrita do Livro de Notas 02, o que possibilitou observar
modificações na ortografia, que por ventura estivessem presentes nos documentos analisados.
Nunes (1945) também ofereceu subsídios para a análise, uma vez que apresenta várias
informações sobre as vogais e suas variações, recorrendo às formas arcaicas para explicar
porque houve algumas modificações, enquanto outras formas desapareceram. Teyssier (1997)
e Willians (1975) também foram de grande auxílio para a análise das variações grafemáticas,
principalmente no que diz respeito às variações vocálicas encontradas.
2. Análise das variações grafemáticas no corpus
Ancorando-se nos pressupostos teóricos elencados na seção anterior, fizemos o
inventário dos vocábulos, no qual identificamos haver um total de quinhentos e quarenta e nove
(549) vocábulos que apresentaram variações em suas grafias, que se dividem em cento e setenta
e dois (172) vocábulos vocálicos e trezentos e setenta e sete (377) vocábulos consonantais,
conforme se observa no gráfico a seguir:
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Gráfico 1 Vocábulos com variação grafemática no Livro de Notas 02 (Jataí-GO).
Fonte: elaborado pelas autoras.
2.1 Variações vocálicas
As variações vocálicas ocorreram em um total de cento e setenta e dois (172)
vocábulos, com frequências que variaram de uma (1) a setenta e oito (78) vezes. De acordo com
a classificação proposta por Santos (2006) e neste trabalho adotada, as variações vocálicas se
dividem em dez (10) tipos, os quais são apresentados na tabela abaixo, juntamente com a
quantidade de vocábulos encontrados no corpus de pesquisa.
Tipos de variações vocálicas
Ocorrência dos vocábulos no Livro de
Notas 02 (Jataí)
1) “aem contextos de “e”
0
2) “eem contextos de “i”
6
3) “iem contextos de “e”
6
4) “oem contextos de “u”
5
5) “uem situações de “o”
2
6) “uem contextos de “i”
2
7) variação na ditongação final nasal
133
8) uso do “y
17
9) variação entre “i” e “j”
0
10) variação entre “u” e “v”
1
Total
172
Tabela 1: Tipos de variações vocálicas e a ocorrência dos vocábulos
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Percebe-se que não foram encontrados no corpus vocábulos do Tipo 1 (com uso de “a
em contextos de “e”) e variações do Tipo 9 (entre “ie “j”). Do uso do grafema “eem contextos
de “i” (Tipo 2), encontraram-se os seguintes vocábulos: “esperito” (2), “permettidos” (3),
“possue” (4), “destricto” (3), “previlegios” (1) e “escrevão” (1). Na obra de Feijó (1861), todas
172 (31%)
377 (69%)
Vocábulos com variação grafemática (549)
Vocábulos vocálicos
Vocábulos consonantais
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as palavras encontram-se escritas com o grafema “i”, o que nos leva a pensar que provavelmente
houve por parte do escriba uma hipercorreção, pela sua hipótese de que o uso do “i” nesses
contextos estaria relacionado à influência da oralidade, o que deveria ser evitado na escrita
formal. Ainda segundo Nunes (1945, p. 62):
[...] esta troca está tanto nos nossos hábitos que pessoas cultas mesmo, quando falam
descuidadamente, a praticam, sendo tida por afectada e por quase toda a gente, ainda
a mais lida, rejeitada a pronunciação de i em vocábulos como vizinhos, dividir,
ministro, etc..
Identificaram-se os seguintes vocábulos do Tipo 3, com o grafema “iem contextos
em que se esperaria o uso de “e”: sirvir” (2), friguisia” (2), “freguisia" (1), “Lagiado” (3),
“quasi” (1) e “mai” (1). Novamente, em Feijó (1861), essas palavras encontram-se escritas com
“e”, com exceção de mai, variante de mãe que, para o autor, deveria ser escrita com “y”.
Portanto, percebe-se que havia o entendimento de que a representação gráfica do fonema /i/
nesta palavra deveria ocorrer através dos grafemas “iou y”, que possuem o mesmo valor
fonológico. Nos três primeiros casos, parece tratar-se de uma consequência do processo de
assimilação aos fonemas vocálicos presentes nas sílabas tônicas.
Quanto ao vocábulo “quasi” (1), vale dizer que ele está escrito de acordo com os
padrões gráficos vigentes à época de escrita do documento, que Viana (1912) diz que essa
forma de grafar tal palavra perdurou até o início do século XX. A ocorrência de palavras com
“ifinal, segundo Teyssier (1997), começou a ser frequente a partir da segunda metade do
século XVIII em Portugal e no Brasil, que a pronúncia da vogal “eem posição final de
palavra teria se solidificado como “inesse período.
Tocante a variação vocálica de Tipo 4, com o grafema “oem situações de “u”, foram
encontrados os seguintes vocábulos: “pedio” (13), agoa” (4), o” (4), “procedeo” (1) e
“compareceo” (1). No vocábulo “agoa” essa variação se explica “por causa do uso de gu por g
[g], os escribas começam desde o início do século XV a usar guo por gu [gw], e.g.; linguoa;
daguoa, isto é, de aguoa. Pelo fim do século XV, guo foi substítuido por go: agoa por água.”
(WILLIANS, 1986, p. 34 apud SANTOS, 2006, p. 130). Essa substituição perdurou até o final
do século XIX, pois na obra de Feijó (1861) o vocábulo continua grafado da mesma maneira:
agoa.
Conforme ressalta Willians (1945), a vogal “u apareceu inicialmente apenas nas
palavras em que existia o hiato, o que explica o uso de “onos vocábulos o”, “procedeo”,
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“pedio” e compareceo”, em que podemos notá-lo constituindo um ditongo. Além disso, parece
ter havido também aqui a hipercorreção, pela suposição de que o “ué a semivogal do ditongo
final de palavra, devido à sua pronúncia como tal, conquanto na escrita alterne-se com “o”. Os
vocábulos arueira” (4) e “quatru” (2), que fazem parte da variação do grafema “o” (Tipo 5),
possivelmente foram grafados desta maneira por influência da pronúncia.
Das variações com “upor “i” (Tipo 6), tivemos apenas os vocábulos “dous” (29) e
cousas” (5). A esse respeito, Nunes (1945, p. 170-204) afirma que: O ditongo ou, quer latino,
quer romântico, alterna na língua moderna com oi, dizendo-se hoje indiferentemente ouro,
touro, cousa, couro, tesoura, agouro, etc., ou oiro, toiro, coisa, coiro, tesoira, agoiro, etc.” Na
obra de Feijó (1861, p. 259;240), assim como na de Viana (1945, p. 170;204), os dois vocábulos
encontram-se escritos nas duas formas referidas. Isso mostra que a alternância entre elas era
admitida pelos padrões gráficos da língua naquele momento.
As variações na ditongação final nasal (Tipo 7) representam o segundo maior número
de variantes gráficas encontradas no corpus, com cento e trinta e três (133) vocábulos. Alguns
vocábulos têm sua marca de nasalidade no sinal gráfico til sobre a vogal “a” e, em outros, ela
expressa-se através do grafema “m”, como observa-se respectivamente em tinhão e procuraçam.
Podemos observar que alguns dos verbos encontrados no documento, como “houverão
(2), achão(3), “tinhão(6), “assignarão(6) e “comparecerão(3), sempre vêm grafados
com ão”. No corpus, esses verbos remetem ora ao presente, ora ao pretérito perfeito ou, ainda,
ao imperfeito do indicativo, o que não se admite na grafia atual, em que o “ão” denota o futuro
do presente. Feijó (1861) discorda de alguns autores que propõem que todas as formas verbais
da terceira pessoa do plural, independente do tempo e do modo verbal, sejam grafadas com ão”
e sugere uma forma de diferenciação:
Eu porém respondo com distincção, e digo: que todos os nomes, que acabão com som
forte, ou em que carregamos mais na pronunciação, se escrevão com ão, como Alemão,
Christão, João, Sebastião, &c. E os que forem breves, terão accento na penultima, ou
na vogal antecedente: como Christóvão, Estêvão, &c. Nas linguagens dos verbos, as
que acabarem breves, terão os mesmos accentos nas vogais penultimas ao dithongo,
como: Elles amárão, Ensinárão, Lérão, Ouvírão do pretérito; e as que forem longas,
não terão os taes accentos. (FEIJÓ, 1861, p. 80)
O autor propõe que no pretérito os verbos recebam um acento na penúltima sílaba, o
que não ocorreria quando os verbos estavam nos tempos futuros. Mas não se mostrou um
critério suficiente e, por isso, não se efetivou na marcação modo-temporal dos verbos referidos.
Nos dias atuais, a ortografia, para indicar o pretérito dos verbos e fazer essa diferenciação,
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utiliza a terminação am”, que, no entanto, continua gerando dúvidas nos alunos em fase de
aquisição de escrita.
Foram encontrados no corpus cinquenta e quatro (54) vocábulos com a terminação em
ão”, em sua maioria verbos, e trinta (30) com a terminação em “am”, sendo a maioria
substantivos. Há uma minoria de verbos que alternam entre as terminações “ãoe am”, como
“comparecerão” (3) / compareceram(3). É possível observar, a partir dos vocábulos coletados,
que havia, no final do século XIX, uma tendência maior em usar am nos substantivos,
enquanto os verbos eram predominantemente marcados pela terminação “ão”.
Ao todo, onze (11) vocábulos apresentaram oscilações entre as terminações ão” e
am”, como “escrivam” (78) / “escrivão” (49), enquanto outros foram grafados exclusivamente
por am”, em contextos onde hoje se utiliza a terminação ão”, como: “administraçam" (8) e
“quitaçam" (8).
Provavelmente, as escritas terminadas em am/ ão” geravam confusão ao escriba,
embora vocábulos como “quitaçam” e “procuraçam”, encontrados no corpus, apareçam
grafados como “quitaçãoe “procuraçãona obra de Feijó (1861, p. 406;412), que foi publicada
pouco antes da elaboração do Livro de Notas 02 (1876-1877). Ademais, percebe-se a influência
da oralidade na grafia dos vocábulos encontrados, que oralmente não muita distinção entre
am” e ão”.
Lançando nosso olhar para outro tipo de variação vocálica, o Tipo 8, referente ao uso
do “yem contextos diversos do atual, tivemos um total de dezessete (17) vocábulos. Observa-
se, a seguir, que o “yfoi utilizado em contextos onde o sistema ortográfico vigente prevê a
semivogal “i”, por vezes representada graficamente por “e”, como em: “Vieyra(3), Goyas
(31) / Goyaz(18), “pay” (1) e may (4). No caso da palavra may (mãe), Feijó (1861) salienta
que esta pode ser escrita tanto com “e como com y, mas prefere a forma escrita com o
grafema “y”.
Willians (1975) pontua que desde o período fonético havia confusões nas grafias de i,
y e j, como nesses exemplos apresentados pelo autor: aya por haja; ydade por idade. Podemos
observar essa mesma confusão nos vocábulos Goyas”, “Vieyra” e “Pay”, presentes no corpus.
De modo similar, Feijó (1861) afirma que o “y” se pronuncia da mesma forma que a letra “i”,
o que poderia justificar as confusões entre os grafemas ye “iem séculos passados. Ainda
segundo este autor, o “yera usado para marcar os ditongos “ay, ey, e oy”, caso dos vocábulos
encontrados no corpus. Já no começo do século XX, o grafema “yem ditongos cai em desuso;
apenas continuando a ser usado em alguns nomes próprios.
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Durante a coleta de dados, não se encontrou nenhum vocábulo com a variação entre
“ie “j”, mas somente a variação “upor “v”, em apenas um (1) vocábulo: Silva. Este vocábulo
apareceu sessenta e sete (67) vezes no corpus, e sua variante Silua apenas uma (1) vez. Segundo
aponta Santos (2006), na origem do alfabeto latino não havia o grafema “v”, mas usava-se o “u
com valor vocálico e consonantal. Ainda de acordo com a autora, desde que o grafema “v
surgiu, ele era confundido com o “u” na escrita.
2.2 Variações Consonantais
As variações consonantais são observadas a partir de quatro tipos distintos:1) a
alternância entre as consoantes “s”, “z”, “ce ç”; 2) o uso do “h”; 3) o uso de consoantes
geminadas; e 4) o uso de consoantes mudas. Na tabela abaixo é apresentada a quantidade de
vocábulos referentes a cada um dos subtipos das variações consonantais:
Tipos de variações consonantais
Ocorrência dos vocábulos no
Livro de Notas 02 (Jataí)
1) Alternância entre as consoantes “s”, “z”, “ce ç”
179
2) Uso do grafema “h”
33
3) Uso de consoantes geminadas (t, n, l, f)
4)Uso de consoantes duplas (pt, ct, gn e cç)
Total
106
59
377
Tabela 2: Os tipos de variações consonantais e a ocorrência dos vocábulos
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Ao todo, foram encontrados trezentos e setenta e sete (377) vocábulos no corpus com
variações consonantais. As variações entre as consoantes do Tipo 1 “s”, “z”, “c” e “çforam as
mais expressivas da categoria, com um total de cento e setenta e nove (179) vocábulos. Em
todos os casos de variações consonantais, os vocábulos apresentaram frequências diversas,
variando de uma (1) a cinquenta e nove (59) vezes.
Sobre a alternância entre as consoantes “s”, “z”, “ce “ç”, Teyssier (1997, p. 59)
afirma que havia no galego-português “os quatro fonemas /ts/ (ex.: cen), /s/ (ex.: sen), /dz/ (ex.:
cozer) e /z/ (ex.: coser)”. Durante o século XVI, as duas africadas /ts/ e /dz/ perderam o elemento
oclusivo, mas ainda havia oposição entre elas, já que uma era surda e a outra sonora. Por volta
de 1550, ainda conforme o autor, “confusões começam a aparecer nos textos entre cada uma
das pré-dorsodontais e a ápico-alveolar que lhe corresponde: encontra-se ç em vez de -ss-, -ss-
em vez de ç, z em vez de -s- e -s- em vez de -z-. ” (TEYSSIER, 1997, p. 61).
Assim, houve a redução de quatro para dois fonemas, em favor das pré-dorsodentais
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/s/ (surda) e /z/ (sonora), que, contudo, ainda geravam bastante confusão em suas grafias, como
nos exemplos dados por Teyssier (1997): paço e passo, e cozer e coser. Observa-se essa
confusão no documento analisado, em vocábulos grafados com “sem vez do “zatual, tais
como “fasenda” (41), “fasendo” (24), “faser” (21), “fisesse” (16). A esse respeito, Feijó (1861,
p. 104) traz alguns exemplos de quando se deveria escrever com “z”:
Esta regra he mais difficultosa, por serem muitas as palavras, que entre duas vogaes
se escrevem com hum só S, e se pronuncia como Z. As regras geraes são, que
escreveremos com Z todas as linguagens dos verbos Fazer, Dizer, Prazer, Trazer, nos
tempos em que Z fere a vogal seguinte.
Percebe-se que as alternâncias mencionadas acima resultam de hipóteses do copista,
muitas vezes por influência da oralidade ou analogia com outras formas aceitas na língua, ou,
ainda, por uma própria inconsistência da ortografia, que prevê o uso de grafemas distintos em
caso de um único fonema. Feijó (1861) lista em sua obra algumas palavras que deveriam ser
grafadas com “z e “s”, mas, a despeito disso, percebe-se no documento que determinados
vocábulos foram grafados com “sem vez de “ze vice-versa, de maneira imprópria aos olhos
dos padrões ortográficos vigentes, tais como: “juiso” (47), “pas” (36), Jezus” (11), gosar(6),
“desesseis” (2) e “valioza” (2).
Os vocábulosz” (5) e “thezouraria” (3), encontrados no corpus, estão escritos da
mesma maneira na obra de Feijó (1861), consideradas, portanto, grafias adequadas à época em
que o documento foi escrito. Houve também variações em antropônimos como “Souza” (89) /
“Sousa” (26) e Jose” (64) / “Joze” (64), mas as duas grafias existem e, como trata-se de nomes
próprios de pessoas, podem ser grafados da forma como aprouver a cada um.
Feijó (1861) afirma que muita confusão com relação às palavras que devem ser
escritas com “cou “sdevido à sua pronúncia similar diante de “e” e “i” e ressalta ainda que
“para os que não sabem diversificar o C do S pela sua pronunciação, dizem os Orthographos,
que não regra mais certa do que observar as palavras latinas, e escrever por imitação” (FEIJÓ,
1861, p. 46). Dos vocábulos contendo “cem lugar de “s” atual ou vice e versa, podem-se listar
os seguintes, a título de exemplificação: “secenta” (11), “Fonceca” (3) e “passifico” (4),
Apareceram, ainda, no corpus, variações entre os grafemas “ce çe também entre
“s” e “ç”, tais como: “presenca” (5), “justica” (5), “pareçer” (8), compareçeram” (8), “presso
(7) e fasso” (3). No uso do “cno lugar de “ç”, pode ser que o escriba tenha se esquecido da
cedilha, por pressa ou descuido, ou esta pode não ter ficado clara ao editor dos manuscritos. Já
nos vocábulos em que se nota o uso do “ç” em vez de “c”, possivelmente era de
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desconhecimento do escriba que antes de “e” e “i”, dispensava-se a cedilha. Com os vocábulos
“presso” e “fasso”, provavelmente o escriba procurou evidenciar que não se tratava do “scom
o som “z”, que o “sduplo e o “ç” concorrem entre si naqueles contextos. Como aponta
Teyssier (1997), desde meados de 1500 ocorrem confusões entre “s”, “z”, “c”, “ç”, fenômeno
que se torna menos frequente com a reforma ortográfica estabelecida no início do século XX.
Convém dizer que mesmo nos dias atuais percebem-se numerosas dúvidas em relação
à escrita das palavras com “s”, “z”, ss e “ç”, devido principalmente aos sons que esses
grafemas têm, que o mesmo som pode ser representado por grafemas diferentes. Ainda
conforme ressalta Teyssier (1997, p. 61), “a língua escrita esforça-se em manter a ortografia
antiga, sem, no entanto, conseguir evitar inconsequências do tipo socegar e Brazil em vez de
sossegar e Brasil”.
Tratando neste momento da variação consonantal de Tipo 2, referente ao uso do
grafema “h”, recorremos aos dizeres de Willians (1975), o qual ressalta que o “h” foi usado
inicialmente para marcar o hiato entre duas vogais, como nos vocábulos “Paranahyba” (9),
“Jatahy” (55) e “ahy” (32), encontrados no Livro de Notas em estudo. Já o vocábulo “he” (16)
indica a terceira pessoa do presente do indicativo do verbo ser e é grafado com “h” inicial para
não se confundir com a conjunção “e”, conforme Feijó (1861, p. 68) ressalta: “[…] em muitas
[palavras] he preciso, para differença de outras, que sem H se equivocão, como E conjunção, e
He terceira pessoa do verbo Est no portuguez”.
Alguns vocábulos aparecem com “h” escrito em seu interior, tais como: “Chrysto”
(37), “Chrysostomo” (21), “authoria" (6), “author” (13), “theor” (16) e “thesouraria” (6). O uso
do “h” junto com o “t” nestes se explica justamente pelo período pseudoetimológico, no qual
buscava-se escrever as palavras conforme a sua origem suposta ou conhecida: “A Orthographia
do T aspirado com H he tirada das palavras latinas, ou greco-latinas, que traduzimos para o
nosso uso, quasi com as mesmas letras; e para perfeita imitação as observamos(FEIJÓ, 1861,
p. 95). Essas variações eram comuns no culo XIX, mas a partir do início do século XX muitas
deixaram de existir, como pode ser observado na citação a seguir.
III. - É eliminada a letra h do interior dos vocábulos, com excepção do seu emprego,
como sinal diacrítico, nas combinações ch, lh, nh, com os valores que as seguintes
palavras exemplificam, e unicamente para eles: chave, malha, manha. [...] IV. - É
conservado o h inicial, quando a etimologia o justifique, como em homem, humano,
honra, hoje; mas abolido onde é erróneo, como em hontem, hir, hombro, que se
escreverão ontem, ir, ombro. (VIANA, 1912, p. 11)
Tais modificações foram preservadas até os dias atuais e as formas de escrita com o
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grafema “hencontradas no Livro de Notas são justificadas em grande parte pela ampla adesão
ao período pseudoetimológico da ortografia. Os vocábulos encontrados com consoantes
geminadas (Tipo 3) podem ser explicados igualmente pelo período pseudoetimológico, no qual
houve uma grande tentativa de se escrever de maneira mais rebuscada e com elegância. Feijó
(1861, p. 35) traz a seguinte explicação para o uso das consoantes duplas:
Muitos dão aqui varias regras: mas humas tão confusas, e outras tão incertas, que eu
julgo observar as palavras latinas, e vermos quaes são as portuguezas, que dellas
se derivão, para as escrevermos com similhantes letras. […] Donde as palavras
Abbreviar, Affinidade, Aggravar, Communicar, Peccar, dobrão as consoantes, porque
as latinas, de que são derivadas, tambem as dobrão.
Alguns dos vocábulos que apresentam esta condição e que aparecem com maior
frequência no Livro de Notas analisado são: collectoria” (35), “anno” (88), settenta” (125),
sette” (52), “villa” (53), “nottas” (36), “deffender” (31), “delles” (46) e “elles” (30). Percebe-
se uma padronização que subjaz ao uso das consoantes geminadas, que ocorrem no corpus
apenas com determinadas consoantes (“t”, “n”, “le “f”), e que nenhum dos vocábulos se inicia
ou termina por elas. Podemos observar, a partir da obra de Feijó (1861), que durante o século
XIX essas consoantes geminadas eram mais frequentes em muitas palavras, e a maioria das
consoantes do alfabeto podia também ser dobrada, com exceção do “h”, “j”, “v”, “x” e “z”, que
nunca eram geminadas pelo fato de os latinos não dobrarem esses grafemas.
Ainda de acordo com Feijó (1861), as consoantes “f”, “t”, “ne “l”, quando geminadas,
chamadas pelo autor de consoantes dobradas, são grafadas assim por analogia com a língua
latina. Mas, segundo Willians (1975), algumas palavras do período pseudoetimológico não
eram escritas de tal forma por causa da sua etimologia, e sim por imitação: “Tais grafias podem
ter decorrido da imitação do uso indiscriminado de outras consoantes simples e duplas
intervocálicas” (WILLIANS, 1975, p. 39). Sendo assim, o copista podia muito bem inserir uma
consoante por imitação de outra palavra, sem saber, por exemplo, que não se dobra o “lem
todas as palavras com esse grafema.
Com relação aos vocábulos “settenta” (125), “sette” (54) e “settecentos” (11), pode-se
justificar a sua grafia pela afirmação de Santos (2006, p. 139) de que “no primeiro caso de
evolução do latim para o português pela evolução popular, temos o grupo de consoantes que se
tornaram geminadas como é o caso do grupo pt > tt [...]”.
No início do século XX, as consoantes geminadas tenderam a reduzir-se a uma só. De
acordo com Viana (1912, p. 11), nenhuma consoante poderia, a partir de então, se duplicar no
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interior ou no fim de um vocábulo, somente quando a pronunciação exigisse, em alguns casos
de “r” e “s”.
Em continuação a essa análise, passa-se a análise do último tipo de variação
consonantal (Tipo 4) que trata dos encontros consonantais “pt”, ct”, gne ”, os quais foram
encontrados no corpus, como podemos observar nesses vocábulos que ocorreram com mais
frequência: “escriptura” (56), “dicto” (95), “districto” (51), “assignadas” (70), “assigno” (48) e
“acçoens” (8).
Feijó (1831, p. 56) faz a seguinte observação com relação às palavras escritas com
ct”: “escreveremos em portuguez com ct aquellas palavras, que dos latinos recebemos com a
mesma Orthographia” e ainda traz uma lista de palavras que devem ser grafadas com ct”. Desta
feita, é válido informar que os vocábulos citados acima com o uso do encontro consonantal “ct”
encontram-se presentes na lista apresentada por Feijó (1831). Contudo, o autor adverte que essa
regra não se aplica a todas as palavras, por isso, ao escrever, sobretudo textos de maior
formalidade, cabe ao copista ou escritor consultar a etimologia da palavra.
Com relação ao encontro consonantal “gn”, o autor afirma:
A doutrina desta lição he para maior credito da nossa língua na imitação da latina [...].
As palavras que se escrevem com Gm, e Gn todas são participadas da latinidade, que
no uso, e pronunciação dos doutos não perderão esta Orthographia, que nos leva ao
conhecimento de sua origem. (FEIJÓ, 1831, p. 67)
As palavras que apresentam consoantes duplas eram escritas, quase sempre, de tal
maneira por analogia à origem da palavra. Sendo assim, um copista ou escritor, quando em
dúvida sobre a sua grafia, teria que consultar um vocabulário ou dicionário latino, por exemplo,
para ter certeza de como era a escrita de uma determinada palavra. No início do culo XX,
muitas palavras que eram grafadas com as consoantes duplas perderam a primeira consoante
através do processo chamado síncope, como no caso de “districto” e “escriptura”, que passaram
a “distrito” e “escritura”, de acordo com Gonçalves Viana (1912, p. 76; 236).
Considerações finais
Da análise dos vocábulos, importa mencionar que foram menos expressivos aqueles
contendo variações vocálicas do que os vocábulos com variações consonantais, totalizando,
respectivamente, cento e setenta e dois (172) e trezentos e setenta e sete (377) casos.
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Provavelmente, isto se em razão de haver um número maior de consoantes e por elas, ao
longo da história da ortografia da LP, terem sofrido maiores modificações do que as vogais.
No caso das variações vocálicas, as variantes com o ditongo final foram as mais
expressivas, tanto na quantidade como na frequência em que ocorreram, com um total de centro
e trinta e três vocábulos (133). Nas variações consonantais, a alternância entre as consoantes
“s”, “z”, “ce “çforam as mais expressivas, totalizando cento e setenta e nove (179) vocábulos.
É importante ressaltar que não houve nenhuma ocorrência de palavras com metátese e hipértese
no corpus.
O Livro de Notas 2 utilizado como corpus desta pesquisa é datado de 1876 e 1877, o
que o faz estar inserido no período pseudoetimológico da ortografia, que se iniciou no século
XVI e perdurou até o início do século XIX. A esse respeito, foi possível observar que as
variantes analisadas mostram uma consonância com esse período da ortografia, como as
variações entre as consoantes “s”, “z”, “ce “çe o uso das consoantes geminadas. É notável
dizer que, o período recebe o nome de pseudoetimológico porque para escrever adequadamente
a língua portuguesa era preciso conhecer a origem das palavras, mas o que acontecia, na
realidade, era que nem todos tinham tal conhecimento, o que levava muitos a escreverem por
analogia ou imitação.
Entretanto, apesar de se encontrar no período supracitado, também temos resquícios
do período fonético, marcado pela influência da oralidade na grafia das palavras, como
podemos observar nas ocorrências de “upor “onos vocábulos encontrados no corpus.
Observa-se, com base em Toledo Neto (1999), que nas variantes analisadas uma
tendência gráfica maior à uniformização, e não ao caos, como se pode pensar à primeira vista.
Com base nas análises das variações feitas no corpus, podemos concluir, a partir de Toledo
(1999), que há a preferência pelas formas-padrão, aquelas que mesmo com variações mostram-
se frequentes. É o caso das consoantes geminadas, que não atingem todas as consoantes e nem
podem ser usadas em qualquer posição no interior dos vocábulos e dos encontros consonantais,
que acontecem apenas com determinadas consoantes do alfabeto. Percebe-se, assim, que
uma padronização da escrita, ainda que não formalizada em um acordo ortográfico.
Espera-se que o estudo filológico e ortográfico feito neste trabalho possa contribuir
com os estudos históricos da Língua Portuguesa, principalmente os de vertente ortográfica, para
que se compreendam melhor determinadas realizações da escrita e as suas modificações,
percebendo a variabilidade relativa da Língua, tanto de épocas pretéritas, como da atual, e
compreender, principalmente mediante às análises, que a Língua e a ortografia podem se alterar
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ao longo do tempo.
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