Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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Expressões nominais, referenciação e discurso em cinco
notícias sobre crimes
Noun Phrases, Referencing and Discourse in Five Pieces of News
About Crimes
Helcius Batista Pereira
Universidade Estadual de Maringá
Resumo
Neste trabalho, estudamos a relação entre as expressões nominais, o processo de referenciação e o
discurso em notícias sobre crimes. Pretendemos estudar o mecanismo pelo qual o uso de tais expressões
colabora para a produção de sentido e de leitura do real. Também pretendemos investigar a manipulação
do discurso pela imprensa para julgar, isentar ou explorar a imagem dos indivíduos referenciados em
matérias sobre crimes. Para tanto, selecionamos cinco textos escritos publicados no portal G1 e focamos
nossa atenção nas expressões nominais usadas para se referir aos autores de crimes e de suas vítimas. Por
meio de nosso estudo, identificamos um tratamento desigual da construção da imagem desses indivíduos,
em especial dos acusados de serem os autores de atos ilícitos. Esse fato não depende, inclusive, da
gravidade das provas utilizadas para a acusação dos mesmos. Como principal conclusão, confirmamos
aqui o quanto o processo de referenciação é relevante para a produção e manipulação do discurso.
Palavras-Chave: Expressões nominais, referenciação, discurso.
Abstract
In this article, we study the relation between noun phrases, referencing and discourse in pieces of news
about crimes. We aim to study the mechanism by which these phrases collaborate for the production of
meaning and reading of the reality. We also intend to investigate the manipulation of discourse by the
press to judge, exempt or exploit the image of individuals referenced in news about crimes. To do so, we
selected from G1, a news website, five written texts published and we focused our attention on the noun
phrases used for referring to criminals and their victims. Through our study, we identified an unequal
treatment of the image construction of these individuals, especially those accused of being the
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perpetrators of illicit acts. This fact does not depend on the severity of the evidence used for their
accusation. As the main conclusion, we confirm here how much the referencing process is relevant to the
production and to the manipulation of discourse.
Keywords: Noun phrases, referencing, discourse.
Resumen
En este trabajo, estudiamos la relación entre las expresiones nominales, el proceso de referencia y el
discurso en las noticias sobre los crímenes. Pretendemos estudiar el mecanismo por el cual el uso de tales
expresiones contribuye a la producción de significado y lectura de lo real. También pretendemos
investigar la manipulación del discurso de la prensa para juzgar, eximir o explotar la imagen de las
personas a las que se hace referencia en materia de delitos. Para ello, hemos seleccionado cinco textos
escritos publicados en el portal G1 y centramos nuestra atención en las expresiones nominales utilizadas
para referirnos a los autores de los crímenes y a sus víctimas. A través de nuestro estudio, hemos
identificado un tratamiento desigual de la construcción de la imagen de estos individuos, especialmente,
la imagen de los acusados de ser los autores de actos ilícitos. Este hecho no depende ni siquiera de la
severidad de las pruebas utilizadas para su acusación. Como conclusión principal, confirmamos aq
cuánto el proceso de referencia es relevante para la producción y manipulación del discurso.
Palabras clave: Expresiones nominales, referencia y discurso
Introdução
Não é incomum encontrar obras escolares que tratam do processo de nomeação
ou de referência ao mundo real através da língua com um paradigma “simplificador”.
Obras de cunho gramatical normativo apontam o substantivo como a classe gramatical
por excelência para tal processo, como podemos ver no trecho seguir: “Tudo que existe
no mundo ou que imaginamos existir tem um nome: casa, escola, livros, Deus,
Brasil, amor, felicidade, fada, etc. Esse nome é justamente o substantivo (SACCONI,
1994, p. 54). O mesmo encontramos em obra mais recentemente publicada: “O
substantivo é a classe de gramatical que nomeia seres, qualidades, ações ou estados”
(CARVALHO; ROSADO, 2017, p. 8).
Dessa proposição, esses manuais passam para descrições de cunho formal da
classe em questão, caminhando para suas propriedades sintáticas, ou seja, as funções
que cumprem na constituição de uma oração ou sentença. Obras sobre “redações”
voltam ao tema do uso das expressões nominais para discorrer sobre aspectos como a
coesão e progressão textual. Esse tratamento ou é marcado por uma ausência de reflexão
de como por meio da linguagem construímos uma visão sobre o mundo ou, pior ainda,
por uma concepção que aposta na relação direta entre os nomes e as coisas, como se a
língua se limitasse a etiquetar um objeto ou dado real acessado de modo direto.
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Neste trabalho, nós nos propomos a investigar como as expressões nominais
colaboram no processo de referenciação e sua relação com o discurso, em uma situação
real de uso. Assumimos aqui a perspectiva defendida por Mondada e Dubois (2003) que
propõem que descoloquemos a tarefa da reflexão sobre o modo de como as informações
são transmitidas e de como a linguagem representa os estados de mundo (em concepção
em que este é um dado previamente existente e estável) para a investigação de como
damos sentido ao mundo a partir de atividades humanas, cognitivas e linguísticas. Nesse
sentido, coloca-se em foco a referenciação e a categorização por meio da linguagem,
entendidos como processos surgidos a partir (e nas) práticas simbólicas forjadas a partir
da “... construção de objetos cognitivos e discursivos na intersubjetividade das
negociações, das modificações, das ratificações de concepções individuais e públicas do
mundo (MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 20).
Nas práticas textuais/sociais, procede-se na introdução de um referente que pode
apontar para um dos elementos do discurso (dêiticos) ou, seguindo outra estratégia,
pode ser retomado ao longo do texto através dos diversos processos anafóricos. Nesse
processo, procede-se a categorização/recategorização das entidades do mundo no
texto/discurso, de modo que o referente é apenas uma representação (e não
transposição) do real fatos muito bem descritos por diversos trabalhos, como
Cavalcante (2003), Koch e Penna (2006), Cavalcante (2014), apenas para ficar em
trabalhos produzidos no âmbito da academia brasileira.
Nessa visão, a instabilidade é a marca de como, através da linguagem,
expressamos o mundo. De modo que o uso de uma palavra não se por processos
inequívocos e exatos de transposição de uma realidade pré-definida, mas como
resultado de práticas sociais dos sujeitos. Um mesmo indivíduo pode ser categorizado
de diferentes modos - e por diferentes palavras - segundo o ponto de vista de quem a ele
se referiu (ou se referenciou). Ou ainda, diferentes categorias podem ser associadas a
este mesmo indivíduo em função do distanciamento temporal entre discursos. Tais
variações não contradizem a regularidade da estrutura gradual das categorias naturais
(MONDADA; DUBOIS, 2003, p. 24).
As expressões nominais, para além de suas funções nos limites da sentença e do
texto, têm, assim como outras expressões referenciais, um papel fundamental para
construção de uma versão sócio-historicamente marcada sobre o mundo.
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As Formas Nominais Referenciais, por serem lídimas representantes das
escolhas a que os usuários procedem para a realização de seus projetos de
dizer, revelam-se importantes meios estratégicos de operar com os objetos-
de-discurso, orientando argumentativamente a construção conjunta destes.
Por resultarem de escolhas de um locutor que constrói sua fala/escrita em
interação com seu interlocutor, elas, muitas vezes, deixam entrever uma
apreciação manipulativa do objeto, por parte do primeiro. São também
responsáveis por inserir os co-enunciadores em uma moldura comum, uma
vez que ativam conhecimentos partilhados. Além disso, confirmam ou
frustram as expectativas que o leitor/ouvinte leva par o texto, dando ‘asas’ a
uma negociação dos sentidos (KOCH; PENNA, 2006: 25).
No presente trabalho, nosso propósito é avaliar exatamente a relação entre o
processo de referenciação e a produção do discurso no gênero “notícia”. Em especial,
focaremos o uso dos nominais utilizados para designação de indivíduos sobre os quais
recaia a acusação ou a suspeita da realização de ato criminoso e, quando for o caso, de
suas vítimas.
Como detalharemos adiante, partiremos de uma avaliação amostral do papel da
mídia na construção de discursos sobre os indivíduos acusados de cometerem crimes e
suas vítimas, todos de diferentes perfis sociais. E nesse sentido, temos também por
objetivo a análise da manipulação da linguagem pela imprensa para julgar, isentar ou
explorar a imagem de tais indivíduos, o que, esperamos, não deixa de produzir e de
reproduzir versões, crenças e concepções sobre o mundo real.
Na próxima seção, detalharemos os procedimentos metodológicos que
realizamos para a análise aqui pretendida, respeitando a perspectiva teórica aqui
explicitada.
2. Aspectos metodológicos
Para realizar o presente estudo, analisamos cinco reportagens que relatam
crimes, publicadas mais recentemente no portal G1. Nossa opção em manter sempre o
mesmo portal não foi fortuita, mas tinha como objetivo garantir que nossas análises
pudessem ser sobre um caso específico, evitando análises equivocadas em função da
diversidade de fontes.
Para selecionar as reportagens de crimes, procuramos matérias que envolvessem
participantes de grupos sociais bem distintos, o que nos permitiu uma análise
constrastiva em função dessa diversidade. Para tanto, procuramos por meio da
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ferramenta de busca do referido site, notícias recentemente publicadas identificadas com
palavras que pudessem se combinar com “crime”, a saber: “travesti”; “jovem”;
“bandido”; mulhere, finalmente, político”. O resultado dessa busca nos permitiu a
escolha de um exemplar para cada pesquisa, o que nos levou a seleção dos seguintes
textos para compor o corpus de análise:
- “Travesti é baleada na boca por cliente após programa em MT”, doravante Notícia I;
- Jovens de classe média são presos suspeitos de furtar rodas de carro, doravante
Notícia II;
- “Bandido morre, outro é preso e PM fica ferido em troca de tiros após arrastões no
interior do RN”, doravante Notícia III;
“'Loira do face' volta a ser presa e faz pose para fotos em delegacia, no AM”, doravante
Notícia IV; e
- Preso, Geddel é levado para Brasília”, doravante “Notícia V”.
Em cada texto selecionado, focamos nossa atenção nas expressões referenciais
usadas para referenciação aos que estavam sendo acusados da realização do crime e de
suas vítimas. Procuramos, então, avaliar como tal uso colaborou para a produção
discursiva, deixando pistas sobre matizes ideológicas veiculadas. Este processo não
deixou de lado potenciais conhecimentos de mundo movimentados para produção de
sentido em questão.
Os resultados obtidos em cada notícia foram comparados, para que pudéssemos
construir análise mais macro das concepções socioculturais envolvidas.
Na próxima seção, passaremos à análise do uso das expressões referenciais em
nosso corpus.
3. Análise das cinco notícias analisadas
A Notícia I data de 2017, foi publicada pelo G1 AP (do Amapá) e retrata um
crime de roubo de rodas de carro que depois eram vendidas. O tulo e o subtítulo
contêm as primeiras expressões referenciais para se referenciar aos que teriam cometido
os crimes: são “jovens de classe média” caracterizados como suspeitos. Sintagmas
cujo núcleo são “jovens” e “suspeitos” (que morfologicamente poderia ser o núcleo de
um SN ou de um SAdj) aparecem ao longo do texto de forma reiterada. Como parte dos
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que teriam participado da ação de furto são menores de 18 anos, a expressão referencial
“adolescentes” também se junta a essas duas. É o que podemos ver no trecho abaixo:
Excerto #1
Retirado de Notícia I
A Polícia Militar (PM) prendeu nesta quarta-feira (22) dois jovens, de 18 e 20
anos, e apreendeu outros dois adolescentes, ambos de 17 anos, no bairro
Jesus de Nazaré, na Zona Central de Macapá. Eles são suspeitos de participar
de furtos de rodas de carros praticados durante a madrugada na região.
As expressões usadas têm se não um tom positivo, ao menos sugerem
neutralidade em relação aos acusados. Um dos efeitos atos de fala - possíveis da
leitura e significação da notícia, em função da referenciação instaurada por essas
escolhas lexicais, é o de provocar uma sensação de lamentação: como “jovens” e
“adolescentes” puderam participar de ação tão reprovável?
Para referenciação ao agrupamento dos participantes do crime, o jornalista segue
a mesma linha. Assim, opta por expressões referenciais livres de julgamento acerca da
culpabilidade, como “o trio”, no excerto a seguir:
Excerto #2
Retirado de Notícia I
Durante a abordagem, o trio indicou uma casa no bairro Santa Rita, na Zona
Sul de Macapá, onde estariam outras rodas furtadas de uma loja no bairro
Pacoval.
Também neutra em termos de julgamento é a expressão referencial usada para
apresentar discursivamente um outro criminoso: o que compraria os produtos do roubo.
Não é comparsa, “cúmplice” ou “receptor do produto roubado”, mas apenas “amigo
dele” (ou seja, do acusado do roubo). É o que percebemos no trecho abaixo, apresentado
na notícia como a fala de um policial que participou da investigação e prisão:
Excerto #3
Retirado de Notícia I
No celular do condutor do veículo, acompanhei algumas mensagens e por
volta de meia noite um amigo dele encomendou os pneus e inclusive com o
pagamento de R$ 700.
Importante notar que, em nenhum momento da notícia, a real identidade dos
participantes, ou seja, seus nomes completos, incluindo dos maiores de idade, é
revelada. Como se sabe é procedimento possível no gênero notícia que os mencionados
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sejam nomeados. Mas ao que tudo indica o fato de serem membros de classe média
parece ter impedido que isso ocorresse, o que ficará mais evidente com o contraste que
faremos com a matéria que analisaremos na sequência.
A Notícia II foi publicada em 2017 pelo G1 MT (do Estado de Mato Grosso).
No título e no subtítulo, a expressão referencial que apresenta aquele que seria a vítima
do crime é “travesti”. No corpo da notícia, 18 expressões referenciais usadas para
referenciação a este indivíduo, sendo que destas 8 são sintagmas nominais nucleado por
“travesti”, como nos excertos abaixo:
Excerto #4
Retirado de Notícia II
Uma travesti foi baleada por um cliente após um programa, na noite desta
terça-feira (10), no Bairro Jardim Potiguar, em Várzea Grande, região
metropolitana de Cuiabá.
Excerto #5
Retirado de Notícia II
Os policiais encontraram a travesti caída no chão e chamaram o Serviço de
Atendimento Móvel de Urgência (Samu).
A estratégia da repetição de “travesti” como cleo dos sintagmas, leva-nos a
suspeitar da dificuldade do autor do texto em buscar outros itens com propriedades
capazes de sustentar discursivamente o mesmo estado de coisas pretendido ao optar
por essa expressão. Parece-nos que por trás da estratégia da repetição está a o fato de
que o interessante ou o dado curioso da notícia em questão vem do fato de que a vítima
do fato narrado possa ser referenciada por essa palavra. Isso nos parece deixar entrever
uma concepção de mundo em que comportamentos distintos do padrão heterossexual
são vistos como excepcionais. Nota-se ainda que os trechos acima evidenciam também
um esforço do autor em marcar gramaticalmente com o uso de determinantes
femininos - a questão de gênero ligada à sexualidade do indivíduo ao qual a expressão
se refere.
Há também na Notícia II o uso de outras expressões referenciais para referenciar
a este mesmo indivíduo, como podemos ver a seguir:
Excerto #6
Retirado de Notícia II
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Segundo a Polícia Militar, a vítima, Eliandro Brasilino de Morais, de 31 anos,
foi atingida na boca e no braço. O cliente fugiu e não foi encontrado até a
manhã desta quarta-feira (11).
Excerto #7
Retirado de Notícia II
Ela é uma das cinco travestis que foram presas na semana passada dentro de
um motel no mesmo bairro. Elas são suspeitas de tentar roubar um cliente e
desacatar policiais militares.
Excerto #8
Retirado de Notícia II
De acordo com a PM, o Centro Integrado de Operações de Segurança Pública
(Ciosp) recebeu a ligação sobre uma pessoa que teria sido atingida por
disparos na Rua Bom Jesus, no Jardim Potiguar.
Excerto #9
Retirado de Notícia II
A travesti foi atingida na boca e passou por um procedimento de
reconstrução. A princípio a bala não ficou alojada no corpo da vítima. O
estado de saúde dela é considerado estável e fora de perigo. A paciente
aguarda a realização de uma tomografia e a avaliação de um neurologista
nesta quarta-feira.
No excerto #6, as expressões referenciais usadas foram a vítima” e “Eliandro
Brasilino de Morais”. Temos aqui a identificação exata do indivíduo em questão,
inclusive com sua nomeação completa e a indicação de sua idade, procedimento, como
dissemos, comum mas não obrigatório no gênero “notícia”. Em contraste com o
procedimento realizado na Notícia I, podemos dizer que não houve aqui qualquer
cuidado em preservar o indivíduo em questão, embora esse fosse a “vítima” do principal
crime narrado.
no excerto #7, associa-se “travestis” ao nominal “suspeito”. Isto ocorre no
parágrafo usado para relatar que a “vítima” de agora teria sido acusada de participar de
um crime anteriormente. Com esse emprego, o jornalista segue o procedimento de não
julgar o envolvido até que o caso seja totalmente esclarecido, utilizado em notícias de
crime.
No excerto #8, o indivíduo é apontado como “uma pessoa”, mas esta
possibilidade de ser algo no texto diferente de um “travesti” ocorre em função da
estratégia narrativa de suspense, escolhida pelo autor ao relatar o evento. Os policiais
que atenderam ao chamado não tinham ideia de que a vítima era o “travesti” e o uso da
expressão referencial em questão possibilita a manutenção desse segredo a que o
evento narrativo se complete.
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Por fim, no excerto #9, o que até então era reiteradamente “travesti” passa a ser
novamente “vítima” e, dessa vez, “paciente”. Os usos dessas expressões podem ser
justificados em função de aparecerem em etapa de texto que mantém intertextualidade
com boletins médicos, dando conta do estado de saúde do que sofreu o atentado.
Mas se a vítima da Notícia II é quase sempre referenciada como “travesti”, qual
expressão referencial foi escolhida para caracterizar o seu algoz? O texto nos oferece “o
suspeito” como seria esperado aparecer em um texto sobre um crime que evita
julgamentos prévios sobre aquele que o atacou. Também nos dá a expressão o cliente”.
Ou seja, o acusado de atentar sobre a vida da vítima ou não recebe julgamento ou é
definido por sua relação “comercial” e “sexual” com o “travesti”. Esse último
procedimento reforça nossa tese de que no texto um dos dados centrais que o texto
pretende oferecer é o de uma imagem de vítima marcada por um comportamento sexual
não padrão.
A Notícia III, por sua vez, também de 2017 e do G1 RN (do Estado de Rio
Grande do Norte), contrasta com os procedimentos discursivos que identificamos nas
duas anteriormente apresentadas. Desde o seu título e durante todo o texto as expressões
referenciais utilizadas para se referir aos que teriam cometido o crime são sintagmas que
têm como núcleo os seguintes itens: “bandidos”, “criminosos” e “assaltantes”. A notícia
relata o caso de roubo de carro, de residência e de estabelecimentos comerciais que teria
sido seguido de sequestro. Mas em especial, coloca no centro de sua narrativa a ão
policial que resultou em prisão e morte de alguns dos que teriam cometido os crimes.
Não a nomeação dos praticantes do crime em nenhum momento da matéria e a
escolha de tais expressões referenciais constrói um “estado de coisas” marcado pela
prévia condenação dos envolvidos. foram julgados, não lhes cabendo expressões
como “suspeitos” ou “acusados”, como outras matérias aqui analisaram optar por fazer.
É o que podemos ver no trecho abaixo:
Excerto #10
Retirado de Notícia III
Por volta das 7h, os criminosos roubaram um carro e trancaram o proprietário
na mala. Depois, os bandidos saíram com o refém fazendo assaltos em
Parnamirim e Nova Cruz, onde fizeram arrastões em dois mercadinhos.
Ao fazer o processo de referenciação com essas expressões, o texto permite uma
interpretação complementada por um conhecimento de mundo de que um “bandido” e
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um “criminoso” devem ter a ação interrompida a todo custo. Como em seriados ou
filmes policiais, que ajudam a construir sua imagem de representantes do mal
marcados por sua crueldade, estes podem ser eliminados. E de fato, ao contrário dos
crimes analisados anteriormente, na Notícia III, temos uma ação policial que resulta em
morte. A escolha de tais expressões referenciais presentes em todo o texto, inclusive nos
depoimentos de policiais envolvidos, evita uma leitura em que essa morte possa ser
interpretada como um novo crime, resultante, por exemplo, de violência policial. O
julgamento previsto nessas expressões atua, nesse sentido, para justificar o modo como
a ação da polícia se desenrolou.
Por fim, a Notícia III apresenta expressões referenciais que apresentam apenas
uma das vítimas das ações criminosas narradas. No texto, esse indivíduo é referenciado
como “o dono do veículo” ou “o dono do carro” e, também, como “refém” (como
podemos ver no excerto #10), que foi mantido preso no bagageiro do automóvel
roubado. Se esta última expressão reforça sua condição de vítima, as duas primeiras
colocam em jogo o fato de ter a propriedade de um bem, o que passa a defini-lo. Há,
portanto aqui, a contraposição entre aquele que tem a posse e aqueles que tentaram
usurpar esse direito. E, diante deste quadro, cria-se mais uma vez a justificativa de uma
ação de força para combater essa violência e reestabelecer o que uma certa noção de
justiça” defendido pelo texto.
a Notícia IV, publicada em 2017 no G1 AM (do Amazonas), apresenta como
uma das autoras uma mulher referenciada por “Loira do face”. A matéria explica que a
expressão foi cunhada anteriormente por esta ter postado fotos em rede social
produzidas de dentro de uma cadeia. Esse sintagma nominal “Loira do face” - será
usado ao todo mais 4 vezes ao longo do texto, embora o desdobramento da reportagem
mostre que o fato da prisão tenha envolvido não somente ela, mas também uma outra,
como podemos ver no trecho a seguir:
Excerto #11
Retirado de Notícia IV
Aline Fontoura Silva, de 25 anos, que ficou conhecida como "Loira do face"
após postar fotos em rede social de dentro da cadeia, foi novamente presa
pela polícia em Manaus. A mulher foi detida com quase dois quilos de drogas
na Zona Leste da cidade, na quinta-feira (5). Após ser presa e com cabelos
mais escuros, Aline chegou a posar para fotos ao lado da amiga Luana
Mayara Caldas de Souza, de 20 anos, também levada à delegacia.
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O processo de referenciação de Aline explora, assim, a curiosidade do fato da
ousadia da postagem da foto, mas principalmente constrói uma imagem marcada pela
sensualidade. Pouco importa, aliás, que a “Loira do face” não seja mais loira, inclusive,
com o descobrimos ao ler a matéria. A reportagem é acompanhada ainda de fotos das
prisões realizadas, apresentando as poses publicadas nas redes sociais, o que amplia a
significação de traços sensuais da notícia.
O trecho que apresentamos no excerto #11 nos mostra que novamente não houve
qualquer ação do autor em preservar a identidade das envolvidas no crime. Ao contrário
da Notícia I, e de modo idêntico à notícia II, analisadas anteriormente, há a exposição de
seus nomes, sobrenomes e idade. O processo de nomeação pelo primeiro nome persiste
ao longo do texto, reforçando esse procedimento.
A referenciação das envolvidas no crime se completa ainda com sintagmas que
m como núcleo “mulher”, como observamos também no excerto #11, por vezes
acompanhados de determinantes e quantificadores (como em “As duas mulheres”).
A última notícia que analisamos, a Notícia V, foi publicada em 2017 pelo G1
BA (da Bahia), e repercutiu de maneira significativa nacionalmente, que o autor do
crime era figura relevante no cenário político brasileiro. Trata-se da matéria que relata a
prisão de Gedel Vieira Lima. O texto é bem extenso, narrando os fatos de sua prisão,
incluindo as justificativas para que essa ocorresse, e por fim, uma seção biográfica
completa e um infográfico resumindo a trajetória do que naquele momento fora preso.
Nossa investigação se concentrou na primeira parte da matéria, para podermos comparar
com os usos das matérias analisadas anteriormente.
Considerando este trecho, alguns usos chamam a atenção. Desde o título e ao
longo de todo o texto, a referenciação ao indivíduo aprisionado foi feita da seguinte
forma: com seu nome completo (por 1 vez), com seu primeiro nome (em 11 ocasiões),
com “ex-ministro” (em 7 ocorrências) e, por fim, com “peemedebista” (em 3 vezes).
Esses nominais aparecem no texto em alternância ou em progressão construída por
repetição. O uso de “Gedel” desde o primeiro momento, no título da matéria, é
explicado por sua notoriedade na vida política recente do país. A repercussão de ter
participado de ministérios do governo federal recentemente parece exigir que o
sintagma “ex-ministro” tenha tanta frequência. É o que temos a seguir:
Excerto #12
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Retirado de Notícia V
O ex-ministro Geddel Vieira Lima (PMDB) deixou o Aeroporto
Internacional Luís Eduardo Magalhães, em Salvador, no início da tarde desta
sexta-feira (8). A aeronave decolou da capital baiana, por volta das 13h20,
com destino a Brasília. A ação foi comandada pela Polícia Federal (PF), que
usou um jatinho no transporte.
Geddel foi preso preventivamente (sem prazo determinado) por volta das 7h
desta sexta. A prisão foi determinada pelo juiz Vallisney de Souza Oliveira,
da 10ª Vara Federal de Brasília, em uma nova fase da Operação Cui Bono,
que investiga fraudes na Caixa Econômica Federal.
Geddel, que cumpria prisão domiciliar, foi preso três dias após a PF ter
encontrado R$ 51 milhões em um bunker supostamente utilizado pelo
peemedebista.
O pedido de prisão foi apresentado pela PF e, posteriormente, acabou
endossado pelo Ministério Público Federal (MPF). O argumento dos
investigadores para solicitar que o ex-ministro retorne para a cadeia é o
eventual risco de ‘destruição de elementos de provas imprescindíveis à
elucidação dos fatos.
A despeito das fortes evidências que recaem sobre o aprisionado - como a
existência de um bunker contendo R$51 milhões fruto de suas ações criminosas, em
nenhum momento do texto usa-se expressões referenciais que construam uma imagem
de um indivíduo comprovadamente criminoso. Como vimos, os nominais usados na
referenciação construída sobre este personagem atingem sua identidade e seu papel na
política. Exploram um conhecimento de mundo tão amplamente ressaltado na mídia
sobre a banalidade da corrupção na polícia brasileira. A matéria, então, constitui-se não
como um fato policial, mas como fato político. E, nesse sentido, importa muito mais
saber quem foi preso e quais as implicações políticas do fato, do que compreender o
crime em si mesmo.
Todos os apontamentos que acabamos de fazer sobre as notícias analisadas em
nosso trabalho mostram como a escolha de expressões referenciais e os processos de
referenciação realizados têm papel fundamental na construção discursiva. Produzem e
reproduzem crenças e conhecimentos de mundo. Não são, portanto, neutras e
evidenciam mais uma vez que a linguagem sempre não reproduz “o real”, mas “uma
visão possível sobre a realidade”.
Com isso finalizamos aqui nossa análise e podemos passar às nossas
considerações finais.
Considerações finais
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Os resultados de nossa análise apontam para a comprovação do papel do uso das
expressões nominais e da referenciação na produção e na manipulação do discurso.
Confirmam os estudos clássicos da referenciação, como Mondada e Dubois (2003),
que sustentam que este é um processo complexo que opera a partir da instabilidade do
acesso da realidade por meio da linguagem. A linguagem o representa fielmente um
mundo, por transposição simples e direta a um código linguístico aprendido por seus
usuários, mas atua na criação de uma realidade possível. Nesse sentido, o uso das
expressões nominais para referenciação a indivíduos do mundo não é isento
ideologicamente. Os usuários da língua exploram a virtualidade semântica dos itens
lexicais, em processo dinâmico de produção de sentido, complementado com saberes
contextuais, intertextuais e de conhecimentos e visões acerca do mundo.
Os tratamentos isentos dados aos “jovens de classe média” da Notícia I, ao
acusado de atentar contra a vida do “travesti” na Notícia II e ao “político” preso da
Notícia V, em contraposição ao julgamento prévio dos indivíduos que teriam cometido
os crimes na Notícia III, evidenciam uma visão de mundo marcada pela divisão social
dentro do universo de praticantes de crime. A referenciação do “travesti” e da “Loira do
face” na Notícia IV - também confirma um tratamento desigual de indivíduos a partir
de conceitos e preconceitos acerca da sexualidade e da exploração da sensualidade dos
envolvidos. A referenciação está longe de ser marcada por objetividade e isenção.
A mídia, que opera a partir da matéria-prima da linguagem, não poderia deixar
de estar sujeita a sempre realizar um certo engajamento na construção da realidade.
Nesse sentido, a forma desigual de como os envolvidos em crimes são referenciados nas
notícias aqui avaliadas revelam não apenas a tentativa de representar indivíduos
distintos, mas colocam em evidência matizes ideológicos dos textos, cuja produção e
interpretação se sempre em situação de ancoragem social, cultural e histórica. O
processo de referenciação atua, por conseguinte, para a produção e a reprodução de
crenças sobre o mundo em que vivemos.
Referências
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interior do RN, G1, 11 out. 2017. Disponível em: https://g1.globo.com/rn/rio-grande-
do-norte/noticia/bandido-morre-e-pm-e-ferido-em-troca-de-tiros-apos-arrastao-em-
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Preso, Geddel é levado para Brasília, G1, 08 set. 2017. Disponível em: <
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Travesti é baleada na boca por cliente após programa em MT, G1, 11 out. 2017,
Disponível em: https://g1.globo.com/mato-grosso/noticia/travesti-e-baleada-na-boca-
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