Foucault (2004) releva o caráter singular dos enunciados que constituem os
arquivos em sua relação com o acontecimento discursivo, já que o “já-dito” dá origem a
novos dizeres, que estão além do campo do repetível:
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo
é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma
linearidade sem ruptura e não desapareçam ao simples acaso de acidentes
externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com
as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo
regularidades específicas. (FOUCAULT, 2004, p.147.)
Trazemos, então, a noção de memória do antropólogo Candau (2011) para dialogar
com os autores citados, relacionando a memória à formação identitária, uma vez que ela
nos modela e é por nós modelada, conduzindo à produção de uma trajetória de vida, uma
narrativa de si. Para o autor, não pode haver uma memória coletiva se as memórias
individuais não “se abrem umas às outras visando objetivos comuns, tendo um mesmo
horizonte de ação” (CANDAU, 2011, p.48), daí a relação com a identidade.
Para o autor, embora a produção de enunciados sobre um fato pode ser
compartilhada socialmente, isso não implica que tal dizer dê conta da existência real de
um fato. Para ele, a “memória semântica” dos fatos tem caráter individual, dificultando a
criação de uma memória coletiva. Em outras palavras, podemos dizer que, aquilo que é
compartilhado, identifica um grupo social e pertence a uma determinada formação
discursiva, uma vez que esta se caracteriza por uma posição ideológica que o sujeito
ocupa numa determinada conjuntura histórica, indicando o que pode e deve ser dito por
ele (PÊCHEUX, 1988, p.160). Tal conceito é também desenvolvido por Foucault (2004,
p.42-43), que acrescenta que as formações discursivas indiciam cadeias de regularidade
dos enunciados bem como sistemas de dispersão, uma vez que elas se mostram móveis,
com potencial de transformação no nível da formulação dos enunciados. Dessa forma, as
formações discursivas indiciam as filiações no discurso, os posicionamentos ideológicos
que não são, porém, completamente estáveis, senão haveria um sentido único para o dizer.
Se pensarmos que, para a Análise do Discurso, não há sentido dado aos enunciados,
mas a constituição de efeitos de sentido a partir do contexto histórico-social em que são
gerados, podemos definir a memória discursiva como um conjunto de enunciados
produzidos ou passíveis de serem produzidos, que constituem e constituirão os arquivos.