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A apropriação do discurso da Lava Jato pela mídia: a formação de
arquivos de memória sobre o evento e seus personagens
principais
The Appropriation of Lava Jato Discourse by Media: the Constitution of
Archives of Memory About the Event and its Main Characters
La apropiación del discurso de Lava Jato por los medios: la constitución de
archivos de memoria sobre el evento y sus personajes principales
Eliane Righi de Andrade
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Resumo
Partindo dos estudos do discurso, nossa proposta é discutir o papel que diferentes mídias tradicionais
exercem na disseminação de sentidos referentes a enunciados tomados do discurso político- jurídico que
envolveram a Operação Lava Jato. Esses enunciados, materializados em novos espaços e tempos
enunciativos, são afetados pela história e pelas relações de poder que os atravessam, construindo efeitos de
sentido sobre a memória discursiva. Dessa forma, entendemos que esses processos de ressignificação são
também novas formas de acesso e constituição dos arquivos de memória, que produzirão efeitos na
identidade do sujeito contemporâneo e em suas representações sociais.
Palavras-chave: discurso da mídia, Lava Jato, arquivo de memória.
Abstract
Based on discourse studies, in this paper we intend to discuss the role that different traditional media play
in the dissemination of meanings related to utterances from the political and juridical discourse related to
the Lava Jato operation. These utterances, when materialized under new time and space conditions, are
affected by history and by the power relations that permeate them, constructing meaning effects on the
discursive memory. Therefore, we understand that these processes of re-signifying are also new possibilities
of access and constitution of memory archives, which will influence the identity of the contemporary
subject and his/her social representations.
Keywords: media discourse, Lava Jato, archives of memory.
Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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Resumen
A partir de los estudios del discurso, nuestra propuesta es discutir el papel que diferentes medios
tradicionales ejercen en la diseminación de sentidos referentes a enunciados tomados del discurso político
y jurídico que involucraron la Operación Lava Jato. Estos enunciados, materializados en nuevos lugares y
tiempos de enunciación, se ven afectados por la historia y las relaciones de poder que los atraviesan,
construyendo efectos de sentido sobre la memoria discursiva. Así, entendemos que estos procesos de
resignificación son también nuevas formas de acceso y constitución de los archivos de memoria, que
producirán efectos en la identidad del sujeto contemporáneo y en sus representaciones sociales.
Palabras clave: discurso mediático, Lava Jato, archivos de memoria.
1. Introdução
Pensamos, respaldando-nos em Charaudeau (2013), que o espaço social é permeado
por relações de poder e sistemas simbólicos que atravessam campos discursivos diversos
e que esses campos mantêm fortes relações entre si. Assim, podemos afirmar que o
discurso político está intimamente atrelado ao discurso das mídias, uma vez que essas
buscam a investigação e circulação de informações, atingindo um maior número possível
de pessoas. Ao mesmo tempo, ao informar as pessoas, as mídias contribuem para a
construção de suas opiniões e de sua organização política. Há, desse modo, um
entrecruzamento entre os diferentes discursos, que tornam fluidas as esferas do público e
do privado, do político e do midiático, do fato e de sua narrativa, que o evento se
constrói por aquilo que se diz dele (a discursivização do fato), pelas imagens que o
descrevem, ou seja, pelos diferentes meios de documentá-lo e de torná-lo público. Assim,
o fenômeno da midiatização afeta não o modo de funcionamento dos discursos, mas
as diversas práticas sociais em que os sujeitos do discurso se envolvem.
Nosso objetivo, neste artigo, é discutir o imbricamento do discurso político-jurídico
que concebemos como uma hibridação no contexto da Operação Lava Jato ao discurso
midiático, propondo gestos de interpretação (ORLANDI, 2001, p.24) que delineiam
indícios da constituição dos arquivos de memória que a mídia está construindo sobre essa
operação.
Mais especificamente, nos debruçaremos sobre algumas representações que
emergem em algumas mídias corporativas sobre os atores sociais que assumem as
investigações dessa operação, representações que farão parte da construção da memória
social, por meio dos arquivos que constituem.
2. 1. Aspectos teóricos
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Primeiramente pretendemos fazer um percurso sobre alguns estudos sobre arquivo
e memória, em diferentes campos teóricos, uma vez que este trabalho é de caráter
interdisciplinar e visa dialogar com as diversas áreas do conhecimento, ainda que
pontuadas suas diferenças e especificidades. Partimos, então, de questionamentos sobre
o que é arquivo, como ele se constitui sob quais condições e sua relação com a
construção de uma memória discursiva.
Iniciemos pelos estudos de Foucault (2004) sobre arquivos, que os define como um
conjunto de enunciados repetíveis, os quais, porém, podem ser constantemente
(re)visitados. O autor estabelece a diferença entre os arquivos documentos registros
geralmente escritos que formariam uma espécie de arquivo “morto” – e os monumentos,
que se caracterizariam por diferentes possibilidades de “entrada” a eles, ou seja, as
diferentes operações de interpretação e organização dos discursos, a partir de novas
condições de produção dos enunciados. Esse conjunto de enunciados formam os arquivos,
os quais determinam a construção de regimes de verdade. Assim, para o autor, as
possibilidades discursivas se dão dentro de “condições de apropriação e de utilização”
(FOUCAULT, 2004, p. 136-137), ou seja, obedecendo a um funcionamento que se
estabelece por uma ordem do discurso. Essa noção de arquivo relaciona-se à visão
pecheutiana de memória discursiva.
Pêcheux (1999, p. 56), que também trabalha pela perspectiva discursiva, afirma que
a memória não deve ser vista como um “reservatório” acumulado de representações, cujo
acesso seria homogêneo, pois a memória caracteriza-se por divisões, deslocamentos,
retomadas e, ainda, contradiscursos, que operam a possibilidade de resistência aos
sentidos estabilizados. Constitui-se, assim, não de lembranças, mas também de
esquecimentos, o que aproxima tal conceito à ideia de arquivos de Foucault, já que esses
estariam condicionados sócio-historicamente.
Segundo Courtine (2009, p.105-106), não se trata de processos cognitivos
implicados na memória, mas a “existência histórica do enunciado no interior de práticas
discursivas regradas por aparelhos ideológicos”, indicando, assim, que enunciados são
repetidos, refutados ou “esquecidos”, de acordo com as diferentes formações discursivas
em que são formulados.
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Foucault (2004) releva o caráter singular dos enunciados que constituem os
arquivos em sua relação com o acontecimento discursivo, que o “já-dito” dá origem a
novos dizeres, que estão além do campo do repetível:
O arquivo é, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares. Mas o arquivo
é, também, o que faz com que todas as coisas ditas não se acumulem
indefinidamente em uma massa amorfa, não se inscrevam, tampouco, em uma
linearidade sem ruptura e o desapareçam ao simples acaso de acidentes
externos, mas que se agrupem em figuras distintas, se componham umas com
as outras segundo relações múltiplas, se mantenham ou se esfumem segundo
regularidades específicas. (FOUCAULT, 2004, p.147.)
Trazemos, então, a noção de memória do antropólogo Candau (2011) para dialogar
com os autores citados, relacionando a memória à formação identitária, uma vez que ela
nos modela e é por nós modelada, conduzindo à produção de uma trajetória de vida, uma
narrativa de si. Para o autor, não pode haver uma memória coletiva se as memórias
individuais não “se abrem umas às outras visando objetivos comuns, tendo um mesmo
horizonte de ação” (CANDAU, 2011, p.48), daí a relação com a identidade.
Para o autor, embora a produção de enunciados sobre um fato pode ser
compartilhada socialmente, isso o implica que tal dizer dê conta da existência real de
um fato. Para ele, a “memória semântica” dos fatos tem caráter individual, dificultando a
criação de uma memória coletiva. Em outras palavras, podemos dizer que, aquilo que é
compartilhado, identifica um grupo social e pertence a uma determinada formação
discursiva, uma vez que esta se caracteriza por uma posição ideológica que o sujeito
ocupa numa determinada conjuntura histórica, indicando o que pode e deve ser dito por
ele (PÊCHEUX, 1988, p.160). Tal conceito é também desenvolvido por Foucault (2004,
p.42-43), que acrescenta que as formações discursivas indiciam cadeias de regularidade
dos enunciados bem como sistemas de dispersão, uma vez que elas se mostram móveis,
com potencial de transformação no nível da formulação dos enunciados. Dessa forma, as
formações discursivas indiciam as filiações no discurso, os posicionamentos ideológicos
que não são, porém, completamente estáveis, senão haveria um sentido único para o dizer.
Se pensarmos que, para a Análise do Discurso, não sentido dado aos enunciados,
mas a constituição de efeitos de sentido a partir do contexto histórico-social em que são
gerados, podemos definir a memória discursiva como um conjunto de enunciados
produzidos ou passíveis de serem produzidos, que constituem e constituirão os arquivos.
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Munidos dessas noções teóricas sobre arquivo, memória e identidade, podemos
relacioná-las, então, ao discurso da mídia, refletindo sobre seu potencial para a formação
dos arquivos. Se, por um lado, observamos que as mídias discursivizam o fato que passa,
muitas vezes, a existir ao ser narrado e, portanto, passível de constituir memória , ao
fazê-lo, este passa a produzir uma cadeia de novas interpretações. No entanto, se os
sentidos nunca são estáveis e os gestos de interpretação dão margem a sentidos outros
que não são compartilhados por todos, em suas diferentes formações discursivas,
podemos dizer que um enunciado pode trazer à tona outro(s), fazendo emergir o discurso
outro, a diferença.
Entendemos a diferença no sentido derridiano de adiamento do sentido (DERRIDA,
2002), pois para o autor o ato linguístico é inaugural no seu caráter de acontecimento, de
abertura, ao mesmo tempo em que se inscreve pelas marcas do tempo e espaço, as quais
“indiciam” certas precondições de sua acontecimentalidade. Não se trata, no entanto, de
uma relação causa/efeito, mas de um -dito sempre presente em qualquer possibilidade
outra do dizer.
2.2. Alguns procedimentos metodológicos
Tomamos metodologicamente a Análise do Discurso de linha francesa como
dispositivo teórico-analítico, propondo um trabalho de “situar” e “refletir” sobre os gestos
de interpretação que expõem os efeitos de sentido a partir do lugar de fala do sujeito nos
recortes discursivos que aqui serão apresentados. Segundo Orlandi (2001, p.25-26), os
gestos de interpretação implicam práticas simbólicas que intervêm no mundo e no real do
sentido, pois a discursividade inscreve efeitos de sentido por meio da materialidade
linguística condicionada pela História. Assim, o funcionamentdo do discurso se na
relação estrutura e acontecimento.
Assim, caracterizamos nossa análise como interpretativista, a qual parte de recortes
discursivos sobre a operação Lava Jato, examinando a língua em seu funcionamento
discursivo, ou seja, em sua materialidade linguística em conformação com a história, num
contexto de produção específico. Não se trata, portanto, de uma análise que se fixe nos
conteúdos em si, mas nos possíveis efeitos de sentido que essa materialidade provoca,
tomando os espaços de enunciação em que aparecem tais dizeres como suas condições de
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produção, delimitadas pelas relações de poder em que tais dizeres circulam. Esses
sentidos atravessam a memória social em um tempo e espaço, e, de certa forma,
sentidos que se tornam hegemônicos, pois uma reprodução e disseminação deles nas
várias esferas discursivas que os tornam de certa forma mais estáveis, configurando-os
como efeitos de “verdade”.
Não é nosso propósito, no entanto, delimitar objetivamente as formações
discursivas que podem ser detectadas a partir dos enunciados formulados, uma vez que
tais formações estão sempre deslizando, podendo vir a ser outras por seu caráter de
permanente construção. Objetivamos com a análise de recortes pinçar alguns traços
discursivos dessas formações, os quais indicam caminhos pelos quais os arquivos de
memória se constroem.
Dessa forma, propomo-nos a discutir alguns efeitos de sentido que emergem do
funcionamento discursivo de textos entendidos, segundo Orlandi (2003, p.139), como
processos resultantes da interação e relação com o mundo por meio da linguagem cuja
significação é múltipla , tomando-os como parte da construção dos arquivos de memória
sobre a Lava Jato e sobre a construção das muitas representações sobre os juízes que
foram tomados como protagonistas de tal operação.
Nossa preocupação também é entender como arquivos que dizem respeito à
memória discursiva sobre operações anteriores anticorrupção estão sendo revisitados
pela mídia para narrar o evento atual, em suas diferenças e semelhanças, uma vez que
envolvem um tempo-espaço diferente, alvos de investigação diferentes, personagens
diferentes e, no caso da Lava Jato, sem que sejamos capazes de prever sua extensão e
consequências.
Para compor o corpus da pesquisa maior do qual faz parte o estudo que aqui
apresentaremos, fizemos, ao longo de 2016 e início de 2017, a busca por material
discursivo que abrangesse a operação Lava Jato como um todo, em pesquisa online nos
arquivos jornalísticos da Folha de S.Paulo e do Estado de S.Paulo
1
, por serem veículos
midiáticos que apresentam significativas tiragens na versão impressa
2
e cujas formações
1
Segundo a Associação Nacional dos Jornais, a Folha e o Estado ocupam, respectivamente, a terceira e
quarto posição em número de exemplares vendidos. Informação disponível em:
http://www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil/. Acesso em 3 fev. de 2017.
2
Embora tenhamos usado o critério numérico de tiragem impressa dos veículos para selecioná-los, os
recortes aqui apresentados foram retirados da versão digital, uma vez que a coleta se deu nesse meio.
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discursivas remontam a um espectro ideológico que varia de mais liberal a conservador.
Nessas mídias, fizemos uma busca semântica pelo sintagma nominal Lava Jato e
selecionamos textos de gêneros jornalísticos diversos, que faziam menções à operação.
Tomamos, ainda, a Revista Carta Capital, edição online, como mídia alternativa às duas
apresentadas, por remontar à formação discursiva diferente das outras mídias escolhidas
(Folha e Estadão), procedendo à mesma seleção semântica, a fim de confrontamos alguns
dos efeitos de sentido que emergiam dessas diferentes formações.
Para este artigo, selecionamos, então, do grande corpus, quatro recortes discursivos
de gêneros jornalísticos diversos (um de uma entrevista em um blog e três de reportagens),
que constituíram uma amostra sobre como tais dias (re)presentaram os juízes que
conduziram as diversas operações da Lava Jato no Brasil, buscando, ainda, nos arquivos
digitais desses jornais dos anos 90, menção à operação Mãos Limpas (ou Mani Pulite)
que remontava à operação anticorrupção na Itália nos anos 90 com a qual pretendemos
dialogar na busca de gestos de interpretação no que diz respeito especificamente ao
imaginário constituído sobre os juízes que foram responsáveis por sua realização.
Fazendo parte desta amostra, trouxemos, ainda, um recorte de reportagem da revista
Carta Capital, edição online, de autoria de Mino Carta, diretor de redação da revista, em
que o enunciador procura desconstruir a imagem de um desses juízes, por meio da crítica
a trechos de um artigo acadêmico escrito por ele. Por isso, embora não se caracterize
como material extraído das mídias aqui propostas, trouxemos, para compor o conjunto de
recortes, dois trechos de tal artigo como parte do arquivo constitutivo das representações
sobre os juízes italianos que conduziram a operação Mãos Limpas na Itália e que vieram
a constituir as próprias representações de juízes brasileiros, as quais estão, ainda,
imbricadas às imagens (re)produzidas pela dia sobre os juízes e que nos remetem aos
arquivos de memória em construção sobre tais eventos no Brasil e na Itália.
Sem a pretensão de tomar tais recortes como significativos de toda a produção
discursiva da mídia sobre a operação Lava Jato, mas de fazer emergir alguns efeitos de
sentido possíveis e diversos sobre os dizeres produzidos em relação a tal evento,
articulando-os à construção da memória discursiva, o objeto de nossa análise (as
representações nessas mídias sobre alguns juízes) encontra-se delimitado pelos discursos
produzidos sobre a operação instaurada no Brasil a partir de março de 2014 e que continua
em processo. Tal operação pode ser entendida como uma ressignificação e uma
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apropriação dos dizeres sobre a operação Mãos Limpas (operação Mani Pulite), ocorrida
na Itália em meados de 1992.
Embora não desenvolvido neste artigo, houve também a necessidade de um estudo
sobre as condições de produção dos enunciados sobre a Lava Jato em relação ao cenário
político brasileiro naquele momento específico (impeachment da presidente Dilma
Rousseff) e aos eventos do passado de mesma natureza (impeachment de Collor em 92 e
a deposição de João Goulart, no início da ditadura brasileira), eventos que, entre outros,
certamente contribuíram e contribuirão para possíveis entradas aos arquivos da operação
e sua interpretação.
Para este trabalho, focaremos, então, nas representações que circularam sobre as
personagens desencadeadoras dos processos judiciais da Lava Jato e, a partir delas,
delinearemos indícios de como tais representações foram concebidas, designadas e
narradas por essas mídias. Pode-se, ainda, por meio delas, pinçar elementos dos arquivos
que constituem a memória discursiva sobre operações anteriores de anticorrupção e que
estão sendo revisitados pela mídia para narrar o evento atual, em suas diferenças e
semelhanças, uma vez que envolvem um tempo-espaço diferente, mas também o já-dito.
2.3. Resultados de análise
Embora a operação Lava Jato em si não seja o objeto direto de análise deste artigo
como explanamos anteriormente, sua nomeação está associada não às operações
policiais deflagradas em uma rede de lavanderias e postos de combustíveis usada para
“lavar” dinheiro ilícito, mas evoca também a memória sobre a operação Mãos Limpas
nos anos 90 na Itália, a partir das associações que foram sendo apontadas e também
construídas no processo de discursivização do acontecimento pelas mídias
3
.
Assim, com personagens diferentes, num espaço e tempo histórico-social diverso,
parece ter havido a necessidade de reconstruir um passado (da Itália) no presente
brasileiro, em relação à operação anticorrupção atual. Isso porque, pontua Candau (2011,
p.164) parafraseando Borges, o passado é modelável em relação ao presente, assim como
3
Como exemplo, citamos a reportagem de Frederico Vasconcelos, de 29/12/2015, da Folha, que descreve
as semelhanças entre as duas operações. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/12/1723856-escrito-em-2004-artigo-de-moro-sobre-operacao-
na-italia-espelha-lava-jato.shtml. Acesso em: 17 dez. de 2016.
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o futuro. A alteração do passado seria, assim, um atributo da memória, uma vez que
“a criação deliberada de artifícios e artefatos memoriais que será mais fortemente
marcada quanto mais as identidades estiverem sob o feito de grandes marcos históricos”
(CANDAU, 2011, p.164).
Em relação às representações que emergem do discurso das mídias sobre os atores
sociais que têm conduzido os julgamentos da operação, podemos afirmar que, logo de
início, parece ter havido uma certa identificação com as ações jurídicas tomadas pelo juiz
curitibano Sérgio Moro. Contribuiu provavelmente para essa imediata identificação a
divulgação pela mídia de que o juiz havia publicado um artigo científico sobre a
megaoperação italiana. Em seu texto, o juiz não descreve os métodos de trabalho e
estratégias utilizados naquela operação, os quais indiciariam os caminhos judicias a serem
traçados pela Lava Jato, mas também as características atribuídas aos juízes da operação
na Itália.
Recorte 1
A coragem de muitos juízes, que ocasionalmente pagaram com suas vidas para a defesa da
democracia italiana, era contrastado com as conspirações de uma classe política dividida e a
magistratura ganhou uma espécie de legitimidade direta da opinião pública. No final dos anos oitenta
e na década de noventa, havia ainda um enfraquecimento na atitude de cumplicidade de alguns juízes
com as forças políticas e que havia retardado a ão judicial. Uma nova geração dos assim chamados
“giudici ragazzini” (jovens juízes), sem qualquer senso de deferência em relação ao poder político
(e, ao invés, consciente do nível de aliança entre os políticos e o crime organizado), iniciou uma
série de investigações sobre a má-conduta administrativa e política. (MORO, 2004, p.58) (grifos
nossos)
Observa-se que o enunciador constrói uma oposição entre os jovens juízes italianos,
cuja atitude é descrita como de coragem já que teriam chegado a pagar com suas vidas
pela investigação que promoveram , e um certo grupo acovardado de juízes, cúmplice
do poder político, que se aliava ao crime organizado. Nota-se que o enunciador afirma
que os primeiros (da nova geração) não demonstravam senso de deferência em relação
ao poder político, o que sugere uma certa autonomia investigativa do grupo em relação à
política dominante. Dessa forma, estabelece-se uma dicotomia básica no discurso, que
remete a formações discursivas diferentes dentro do discurso judicial de então, revelando
ainda uma empatia do enunciador com o primeiro grupo.
Moro parece, assim, ter se espelhado nas ações dos “jovens juízos italianos e em
seus procedimentos para conduzir os processos da Lava Jato, projetando-se, para a
sociedade, como um deles, na ão brasileira. Embora essa identificação não tenha sido
mencionada diretamente pelo juiz nas reportagens selecionadas, tal fato é ressaltado por
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outros enunciadores, em outras reportagens, valorizando as possíveis semelhanças entre
as operações e seus atores (juízes, policiais federais, procuradores etc). Trazemos, como
exemplo, o excerto do blog Novo em Folha, publicado em 29/07/2016, em que aparece o
relato de uma entrevista com o jornalista italiano Rocco Cotroneo (estudioso da operação
italiana “Mãos Limpas”), do Corriere della Sera, realizada por um jornalista trainee da
Folha não nomeado no blog.
Recorte 2
Para Cotroneo (...) a discussão em torno da Operação Mãos Limpas foi muito semelhante à que
envolve a Lava Jato. Ele ressaltou que a sensação de novidade, de novas fronteiras, era a mesma
daqui ou até maior.
Um dos motivos para isso seria o fato de a Lava Jato se basear no mesmo tripé da Operação Mãos
Limpas: novos juízes mais corajosos e independentes, novas possibilidades no campo judicial e a
opinião pública.
Uma outra semelhança seriam os vazamentos, também comuns na operação italiana. (...) Segundo
ele, o uso da delação premiada tornou-se tão comum que praticamente todos os presos tiveram a
pena reduzida. (grifos nossos)
Disponível em: http://novoemfolha.blogfolha.uol.com.br/2016/07/29/operacao-lava-jato-nao-deve-
mudar-politica-no-brasil-como-a-maos-limpas-na-italia-diz-jornalista/ Acesso em: 9 set. de 2016.
O jornalista estagiário confirma as semelhanças e cita, ainda, a sensação de
novidade, que podemos identificar nos procedimentos dos novos juízes. Seria essa
sensação um frescor nos ranços da esfera político-judiciária, em que o novo representaria
uma mudança positiva? Ressalta-se também a coragem e independência dos jovens juízes,
designação que passa a ter um valor de nome próprio, por sua aderência a este grupo
específico, o qual viria a ser identificado como coeso e unido em seus objetivos.
As novas possibilidades no campo judicial citadas basicamente as delações
premiadas e o uso midiático da opinião pública também foram estratégias descritas pelo
juiz em seu artigo:
Recorte 3
A publicidade conferida às investigações teve o efeito salutar de alertar os investigados em potencial
sobre o aumento da massa de informações nas mãos dos magistrados, favorecendo novas confissões
e colaborações. Mais importante: garantiu o apoio da opinião pública às ações judiciais, impedindo
que as figuras públicas investigadas obstruíssem o trabalho dos magistrados, o que, como visto, foi
de fato tentado. (MORO, 2004, p.59.)
Percebe-se que, pelo relato da ação italiana, o enunciador descreve que a mídia
construiu um discurso de apoio às ações dos juízes, ao mesmo tempo em que os
investigadores fizeram uso da mesma para construir um discurso de aproximação com o
público, gerando certa identificação. Esse procedimento também foi (e tem sido) utilizado
Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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pelos juízes que conduzem a Lava Jato. Trata-se de usar a visibilidade da mídia para a
exposição dos fatos como espetáculo e de construir um imaginário social compartilhado,
aderindo simpatizantes à causa. Daí sua natureza de aparência, de representação da
realidade. Se fizermos uma analogia com os processos de memória descritos por Candau
(2011), essa memória compartilhada que ele chama de metamemória seria, no entanto,
uma representação dos fatos, pois constrói-se a partir de enunciados que o repetidos e
que produzem um efeito de eco na sociedade, o que não significa que seja o fato em si.
Percorrendo outros textos das mídias, encontramos o que Candau caracteriza como
compartilhamento de “representações semânticas”, ou seja, efeitos de sentido a partir do
que foi dito e escrito sobre a Lava Jato, as quais, de alguma maneira, tentam se fixar na
memória, pois foram disseminadas pelas mídias e tiveram aderência em grupos sociais
diversos.
Trazemos então um recorte da Folha de S. Paulo de 24/06/2016, em que o
imaginário dos jovens juízes é assimilado a outro juiz da fase Custo Brasil da Lava Jato:
Recorte 4
Discreto e jovem, juiz de Operação Custo Brasil estuda corrupção da Itália
WÁLTER NUNES
DE SÃO PAULO - Poder
24/06/2016
Na época em que o juiz federal Paulo Bueno de Azevedo recebeu a notícia de que seria responsável
por um processo oriundo da Operação Lava Jato, no ano passado, ele estava terminando a leitura de
"Irmãos Karamazov", obra do escritor russo Fiódor Dostoiévski. A trama do livro se desenvolve
durante um processo criminal e é permeada pela dúvida de um erro judiciário, fantasma que
assombra os magistrados. (...)Aos 38 anos de idade, Azevedo é, desde o início do ano passado, juiz
na Vara Criminal da Justiça Federal de São Paulo. Sob sua responsabilidade estão mais de duas
centenas de processos por crimes financeiros dos mais complexos. (...)Assim como Sergio Moro,
Azevedo tem especial interesse pelo combate à corrupção na Itália. Na sua mesa repousa o livro do
juiz italiano Giovanni Falcone, que combateu a máfia e acabou assassinado. Recentemente esteve
em Palermo discutindo combate à corrupção e lavagem de dinheiro. (grifos nossos)
Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/06/1785206-discreto-e-jovem-juiz-de-
operacao-custo-brasil-estuda-corrupcao-da-italia.shtml. Acesso em 9 set. de 2016.
A reportagem constrói a imagem desse outro juiz como jovem e discreto seria
essa última qualificação uma alusão a sua possível aversão à mídia? Além disso, podemos
inferir que é um homem culto e preocupado em ser justo (afinal, qual seria a função
discursiva da menção ao romance Irmãos Karamazov, senão a exposição de sua cultura
letrada e da preocupação em não cometer enganos, como no caso reportado no livro?) e
que as leituras que faz reforçam o imaginário de justiça e de integridade.
Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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Somos informados, ainda, que ele tem em sua mesa de trabalho o livro do juiz
italiano que combatia a máfia nos anos 80 e 90 (citado também no artigo de Moro), o qual
provavelmente teria inspirado ambos. Trata-se novamente de delinear traços sobre o
imaginário do juiz e de seus colaboradores que corroborem com a representação
desejada pela mídia e possivelmente cultivada pelos próprios juízes: a de um justiceiro
do bem”, cujos fins (a punição aos corruptos) justificariam os meios (prisões preventivas,
conduções coercitivas, delações premiadas, ainda que legais), já que isso é feito em nome
de um bem comum, uma vez que tais juízes “desprezam” o poder e os meandros políticos.
Trazemos do Estado mais um recorte sobre outro juiz, responsável pela operação
Eficiência também parte da Lava Jato que resultou na prisão de Eike Batista.
Recorte 5
Magistrado responsável por mandar prender Eike evita holofotes e nega ser rigoroso: ‘Juiz não
pode deixar de cumprir a lei’
Mariana Sallowicz / RIO
Antes mesmo de o dia clarear e a bordo de um cruzeiro de navio durante suas férias, o juiz federal
Marcelo da Costa Bretas, responsável pelos desdobramentos da Lava Jato no Rio, conduzia, por
telefone, a Operação Eficiência na quinta-feira passada. (...)Aos 46 anos, o magistrado ganhou
notoriedade ao manter o mesmo rigor do juiz Sérgio Moro, face mais conhecida da Lava Jato, em
suas condenações e ao decretar prisões preventivas de investigados, entre eles, o ex-governador do
Rio Sérgio Cabral (PMDB). (...)Nascido em Nilópolis, na Baixada Fluminense, o juiz é filho de um
comerciante e de uma dona de casa. A exemplo dos pais, é cristão evangélico “desde sempre”.
Estado de S. Paulo. SP, 29 jan. 2017. Caderno Política. Disponível em:
http://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-mao-de-ferro-da-lava-jato-carioca,70001645202.
Acesso em 31 jan de 2017.
Observamos, na narrativa de apresentação do juiz que conduziu tal suboperação da
Lava Jato, traços discursivos que se assemelham aos de outros recortes aqui analisados.
Da mesma forma que o juiz Paulo Bueno de Azevedo e Sérgio Moro (mencionados em
outros excertos), Bretas é jovem (46 anos), rigoroso (embora negue, sua austeridade é
comparada à do juiz Moro por ter decretado prisões preventivas) e avesso à exposição
midiática (evita holofotes).
também semelhanças no modo como a mídia cria uma ficção narrativa para falar
sobre a vida profissional do juiz Azevedo (recorte 4) enfatizando a relação com o
romance Irmãos Karamazov que estaria lendo e sobre o juiz Bretas, nesse último recorte.
Nesse excerto, que faz parte do início da reportagem do Estadão, nota-se a criação de
uma atmosfera poética (antes mesmo de o dia clarear e a bordo de um cruzeiro de navio),
usual às narrativas ficcionais, a qual é interrompida para relatar a ação dura e “real”
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a ser tomada pelo juiz: a decretação da prisão de Eike Batista, um dos alvos dessa
operação. Sugere-se, pela narrativa, que o juiz interrompeu seu merecido descanso
(férias) para cumprir sua importante missão social.
Nesse momento do discurso, fica bem clara a associação da figura do juiz Bretas
com a de um herói, que se sacrifica, até em seus momentos de lazer, pelo bem comum,
no caso, pelo combate à corrupção, imagem essa que pode ser estendida ao juiz Azevedo,
que se mortifica mediante a possibilidade de um erro judicial, como no caso descrito no
romance lido por ele. Isso porque entendemos que ao herói é inadmíssivel o erro, a
indecisão, já que isso teria um alto custo à sociedade.
Charaudeau (2013, p.115) vincula o discurso político que aqui relacionamos ao
discurso jurídico-político a uma série de ethos, ou seja, a imagens “de que se transveste
o interlocutor a partir daquilo que diz”, afirmando que o sujeito se delineia pelo olhar do
outro e constrói uma identidade a partir desse olhar. Ele cita, por exemplo, o ethos de
credibilidade, que confere ao sujeito uma representação social digna de crédito. É esse
ethos que a mídia parece creditar aos juízes citados, os quais, por sua vez, reforçam em
seu discurso a imagem que lhes é concedida, ou seja, de que são dignos dessa confiança.
Ademais, escapando das regularidades discursivas até aqui apresentadas, aparece,
no recorte, a referência a uma outra formação discursiva (a de cristão evangélico), a qual
se remete ao discurso religioso, fazendo menção, talvez, a uma determinada ética presente
nas ações do juiz
4
.
Não podemos nos esquecer, no entanto, que a convergência das mídias, em seus
espaços diversos de disseminação de conteúdo, principalmente o digital, propicia, ainda
mais, o escape aos sentidos ilusoriamente únicos, em razão de sua maior responsividade,
rapidez e potencialidade no consumo e produção de conteúdos, fazendo com que gestos
de interpretação sobre os arquivos de memória sejam realizados por sujeitos diversos,
constituídos por diferentes formações discursivas, em diferentes espaços de enunciação
quase que instantaneamente.
Para finalizar esta análise, traremos um outro olhar, ou seja, um outro possível efeito
de sentido, produzido a partir de alguns enunciados de um dos juízes mencionados,
contidos no primeiro recorte deste artigo, o qual tomamos como ponto de referência para
4
Essa relação viria a marcar posteriormente o dizer de outros atores da investigação Lava Jato, fato que
não nos cabe discutir neste artigo.
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este diálogo. Refere-se a um recorte da reportagem de Carta Capital versão online,
publicada em 14/03/2016.
Recorte 6
A origem do complô
A personalidade de Sergio Moro revela-se em seu estudo da Operação Mani Pulite, na qual supõe
ter-se inspirado ao conduzir a Lava Jato
por Mino Carta publicado 14/03/2016 02h05
quem enxergue em Sergio Moro alguém entregue à missão redentora, capaz de seguir Pedro, o
Eremita, a caminho da Terra Santa para arrancar o sepulcro de Cristo das mãos infiéis. (...). Melhor,
de todo modo, ir além de interpretações e suposições. Um texto que Moro escreveu ao zarpar na rota
da Lava Jato (destaques do autor) é muito indicativo dos seus propósitos, bem como das suas
quimeras.
Trata-se de um estudo, de indisfarçável pretensão acadêmica, da Operação Mani Pulite, que, na Itália
dos primeiros anos 90, implodiu a Primeira República nascida no imediato pós-Guerra com o fim
da ditadura fascista. Leitura instrutiva para entender e dimensionar a desmedida ambição de quem
escreve, a par da ignorância envolta em empáfia provinciana.
(...) A Itália está longe de ser um país perfeito, mas suas instituições funcionam a contento e o Estado
Democrático de Direito está em vigor. O jornalismo ali existe para todos os gostos e tendências.
(...) As considerações de Sergio Moro sobre Mani Pulite exibem uma personalidade pueril antes
ainda que provinciana. Estamos diante de um impecável rebento destes anos de redemocratização
(?) fajuta, de decadência cultural, de arrogância inaudita, de insensatez avassaladora. E comparar a
Lava Jato à Mani Pulite é apenas ridículo.
Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/revista/892/a-origem-do-complo. Acesso em 9 de
set. de 2016.
Não nos será possível fazer uma análise exaustiva do recorte, mas podemos
recuperar certas representações atreladas ao discurso das mídias discutidas anteriormente,
que aqui aparecem num gesto interpretativo permeado pela ironia: a elevação do juiz a
uma imagem “santa”, impoluta, que vem associada a um discurso religioso também
consagrado à vocação; além da personalidade do juiz associada mais à arrogância do que
ao “destemor”, ressignificando a não “deferência em relação ao poder político”, citada no
recorte 1. Temos, ainda, a dispersão de sentidos que acaba por sugerir outras
representações: o desconhecimento histórico em relação à Mani Pulite; a personalidade
“pueril” do julgador, entre outras, estabelecendo duramente uma crítica em relação às
semelhanças que teriam sido forjadas por diferentes interlocutores, nas outras mídias,
sobre as operações brasileira e italiana.
Com certeza, a análise da materialidade faz transbordar efeitos de sentido que não
estão restritos à superfície da língua como estrutura, mas que remetem às formações
discursivas em seu caráter ideológico, fazendo transparecer as relações de poder que
constituem o discurso. No entanto, relevamos aqui o fato de as leituras dos arquivos que
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constituem a memória não serem únicas, mas se constituírem a partir da interpretação dos
mesmos enunciados por diferentes interlocutores, pertencentes a formações discursivas
também diversas.
3. Considerações finais
Os efeitos de sentido decorrentes de enunciados sobre a operação Lava Jato que
foram produzidos por certas mídias circunscritos por sua natureza de acontecimento e,
portanto, do que é também imprevísivel trazem, à tona, as memórias de eventos outros,
constituídos em tempos e espaços diversos, mas que são reinterpretados à luz de novos
contextos históricos, que indiciam o velho no novo, a repetição na novidade. Isso significa
que os arquivos de memória, formados pelos conjuntos de enunciados ditos, não são
estáticos e os sentidos são produzidos a partir de novos acessos aos arquivos, com suas
peculiaridades atuais. Os eventos que aqui se desenrolaram, com personagens diferentes
e num espaço e tempo histórico-social também diverso, foram discursivizados nas mídias
selecionadas criando uma certa atmosfera de déjà vu, que faz a memória social retomar
os arquivos do passado recente da Itália em relação à megaoperação anticorrupção.
Assim, as personagens que aqui conduzem as investigações são identificadas, nos recortes
trazidos de algumas mídias, como jovens heróis, como ocorrera na Itália. No entanto,
como afirma Derrida (2001), ao mesmo tempo em que há um desejo de manutenção dos
arquivos de memórias e, neste caso, a busca por uma identificação com eles por meio
das semelhanças ressaltadas por tais mídias , os enunciados que formam os arquivos do
passado não são mantidos intactos, pois sofrem a ação do tempo-espaço, que os
transforma mediante as novas características do acontecimento atual (Lava Jato), que o
torna, ao mesmo tempo, semelhante e diferente, pois o acontecimento é marcado por
certa imprevisibilidade. Assim, há uma ressignificação da operação Lava Jato brasileira,
criando uma outra operação Mãos Limpas, marcada por novo contexto histórico-social.
Podemos pensar com Candau (2011), ainda, que há várias memórias sociais, que se
configuram como narrativas parcializadas da realidade, ou seja, uma narrativa entre tantas
outras possíveis, ainda que haja discursos hegemônicos que podem silenciar vozes que
são dissonantes. Não se trata, porém, de fazer um julgamento de valor sobre as várias
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vozes que constituem o interdiscurso a memória discursiva , mas de indiciar a
possibilidade da diferença, que permite a disseminação de efeitos de sentido diversos.
Assim, podemos concluir que as mídias discursivizaram o fato, transformando-o
numa narrativa com seus protagonistas, mas não trazem à presença o próprio
acontecimento em sua natureza performativa, apenas uma representação dele, pela
própria natureza simbólica da linguagem. Daí podermos pensar na riqueza das
interpretações que os arquivos produzem para a constituição da memória identitária,
mediante novas visitações, transformando os documentos em monumentos, como diria
Foucault (2004). Não sejamos, no entanto, ingênuos ao ponto de deixar de lado as relações
de poder que atravessam os espaços sociais e privilegiam certas formações discursivas,
as quais forçam “esquecimentos” na história, [n]um trabalho de recusa e censura do
passado (CANDAU, 2011, p.130).
Referências
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CHARAUDEAU, P. Discurso político. SP: Ed. Contexto, 2013.
COURTINE, J.-J. Análise do discurso político. São Carlos: Edufscar, 2009.
DERRIDA, J. Mal de arquivo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
____. A escritura e a diferença. 3ª. edição. SP: Ed. Perspectiva, 2002.
FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Editora Forense Universitária.
2004.
MORO, S. F. Considerações sobre a Operação Mani Pulite. In Revista CEJ, Brasília, n.
26, p. 56-62, jul./set. 2004.
ORLANDI, E. Discurso e texto. Campinas: Pontes Editores, 2001.
____. A linguagem e seu funcionamento. Campinas: Pontes Editores, 2003.
PÊCHEUX, M. Semântica e discurso. Campinas: Editora da Unicamp, 1988.
_____ et al. Papel da memória. Campinas: Pontes Editores, 1999.