Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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As várias formas de designar: a historicidade inscrita em dicionários
Several Ways to Designate: Historicity Inscribed in Dictionaries
Angela Corrêa Ferreira Baalbaki
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Resumo
Neste artigo, procuramos identificar alguns efeitos de sentidos produzidos na relação entre os termos
vulgarização e divulgação científica em um corpus composto por diferentes materialidades textuais (artigos,
capítulos de livros e verbetes de dicionários). Em um retorno contínuo com os dispositivos teóricos da Análise
do Discurso francesa e os seus procedimentos analíticos, recortamos e agrupamos sequências discursivas,
buscando compreender os deslizamentos de sentido relacionados às duas designações. Para tal, consideramos as
redes de sentido que constituem o que é possível dizer e não dizer sobre cada uma. Identificamos que, no
processo histórico de ressignificação, houve a interdição do termo vulgarização científica, a partir do século XX,
por ser considerado pejorativo.
Palavras-chave: ressignificação, dicionários, divulgação científica.
Abstract
In this article, we aim to identify some meaning effects produced in the relation between the terms vulgarização
científica (science vulgarization) and divulgação científica (scientific divulgation) in a corpus made up of
different kinds of textual materiality (articles, book chapters and dictionary entries). By means of a continuous
return to the theoretical devices from by the French Discourse Analysis and its analytical procedures, we have
selected and grouped discursive sequences seeking to understand the slides in meanings related to the two
designations. In order to do so, we have considered the networks of meanings that make up what we can and
cannot say about each of the designations. We found that in the historical process of redefinition, the term
vulgarização científica has been proscribed since the twentieth century because it has been considered
derogatory.
Key words: re-signifying, dictionaries, science popularization.
Resumen
En este artículo, buscamos identificar algunos efectos de sentidos producidos entre los términos vulgarización y
divulgación científica en un corpus compuesto por diferentes materialidades textuales (artículos, capítulos de
libros y textos de diccionarios). En un retorno continuo con los dispositivos teóricos del Análisis del Discurso
francesa y sus procedimientos analíticos, recortamos y agrupamos secuencias discursivas, buscando comprender
los deslizamientos de sentido relacionados a las dos designaciones. Para eso, consideramos las redes de sentido
que constituyen lo que es posible decir y no decir sobre cada una. Identificamos que, en el proceso histórico de
resignificación, hubo la interdicción del término vulgarización científica, a partir del siglo XX, por ser
considerado peyorativo.
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Palabras clave: resignificación, diccionarios, divulgación científica.
1 Introdução
Tomar sobre processos de (re)significação dentro do quadro teórico da Análise do
Discurso francesa, implica tocar em uma questão fundamental: sujeito e sentido se
houver assujeitamento à língua (Orlandi, 2002). Para significar e constituir-se como sujeito,
faz-se necessário ser afetado pelo simbólico (sistema significante), dito de outra forma, ser
“assujeitado a significantes com significações determinadas (MARIANI, 2006, p.27). A
língua é a materialidade simbólica que estrutura o sujeito. Ao considerar a materialidade
significante, Pêcheux (1988) assevera que as palavras mudam de sentido de acordo com as
posições ideológicas daqueles que as empregam. Essas posições referem-se às condições de
produção nas quais os sujeitos se situam para serem sujeitos de seu dizer. Nas palavras do
autor:
poderíamos resumir essa tese dizendo: as palavras, expressões, proposições,
etc., mudam de sentido segundo as posições sustentadas por aqueles que as
empregam, o que quer dizer que elas adquirem seu sentido em referência a
essas posições, isto é, em referência às formações ideológicas [...] nas quais
essas posições se inscrevem (PÊCHEUX, 1988, p. 160 grifos do autor).
A formação ideológica, por sua vez, materializa-se em uma formação discursiva que,
conforme Pêcheux, é definida como “aquilo que numa formação ideológica dada, isto é, a
partir de uma posição dada numa conjuntura dada [...] determina o que pode e deve ser dito
(PÊCHEUX, 1988, p. 160 grifos do autor). Vale salientar ainda que uma formação
ideológica pode comportar uma ou várias formações discursivas, que se definem por sua
relação sempre heterogênea com aquela, determinando assim os sentidos.
A ideologia, longe de ser ocultação, mascaramento da realidade, é entendida como o
mecanismo de construção de transparências para serem interpretadas como evidências. Assim
sendo, a ideologia pode ser “compreendida como a direção nos processos de significação,
direção esta que se sustenta no fato de que o imaginário que institui as relações discursivas
(em uma palavra, o discursivo) é político” (ORLANDI, 1990, p. 36). Em outros termos, a
ideologia é interpretação do sentido em uma direção, ou melhor, como os sentidos são
fixados historicamente em determinada direção. Não se relaciona “a ideologia à falta, mas, ao
contrário, ao excesso: é o preenchimento, a saturação, a completude que produz o efeito da
evidência, porque se assenta sobre o mesmo, o já-lá” (ORLANDI, 1990, p. 36). Além disso, o
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imaginário institui as relações discursivas, ou melhor, possibilita a condição de significação
do sentido, como também da constituição do sujeito. É nele que se produz o efeito da
transparência da linguagem; a ilusão de que podemos atravessar as palavras e atingir seu
sentido literal, seu “conteúdo”. Voltaremos a esse ponto mais adiante.
Assumimos que o sentido de uma palavra é decorrente de sua relação com uma
formação discursiva. Uma mesma palavra inserida em diferentes formações discursivas
produzirá sentidos diversos, assim como diferentes palavras inseridas em uma mesma
formação discursiva podem produzir o mesmo sentido. A respeito da questão da relação entre
palavras e sentido, Pêcheux (1998) nos diz:
se uma mesma palavra, uma mesma expressão e uma mesma proposição podem
receber sentidos diferentes - todos igualmente "evidentes" - conforme se refiram a
esta ou aquela formação discursiva, é porque [...] não tem um sentido que lhe seria
"próprio", vinculado a sua literalidade. Ao contrário, seu sentido se constitui em
cada formação discursiva [...] De modo correlato, se se admite que as mesmas
palavras, expressões e proposições mudam de sentido ao passar de uma formação
discursiva a uma outra, é necessário também admitir que palavras, expressões e
proposições literalmente diferentes podem, no interior de uma formação discursiva
dada, "ter o mesmo sentido"[...] A partir de então, a expressão processo discursivo
passará a designar o sistema de relações de substituição, paráfrases, sinonímias, etc.,
que funcionam entre elementos linguísticos - "significantes" - em uma formação
discursiva dada (PÊCHEUX, 1988, p. 161).
São os processos discursivos os sistemas de relações de significantes em uma
formação discursiva que nos interessam como analista de discurso. Voltando ao efeito da
transparência do sentido, pode-se dizer que não sentido único, literal. Os sentidos que se
apresentam como literais são produtos da história, e não o resultado de uma relação natural
entre palavras e coisas do mundo. Os sentidos não têm origem no sujeito, que são
determinados pela formação discursiva na qual ele se inscreve. O sujeito posiciona-se na
formação discursiva que o determina, identifica-se com alguns sentidos e rejeita outros. É
também dessa forma que sujeitos e sentidos constitutivamente descontínuos em sua
historicidade, divididos em sua constituição pelo inconsciente e marcados por uma
incompletude garantem, pela força do imaginário, uma aparente unidade. Esse é efeito da
ideologia que, dissimulando sua existência em seu próprio funcionamento, produz evidências
nas quais se constitui o sujeito. É importante frisar que as formações discursivas são
constituídas pelas diferenças, por contradições e confrontos. Estão em constante movimento,
em um processo de reconfiguração, delimitando-se por aproximação e afastamento. É dessa
forma que sujeitos e sentidos constitutivamente descontínuos, incompletos, divididos
produzem a unidade imaginária a que nos referimos.
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O sentido será diferente conforme se refira a uma ou outra formação discursiva.
Porém, no seu interior, o sentido é sempre “evidente”, ou seja, é um efeito de dissimilação de
transparência de sentido. Dessa forma, o sentido que se pretende no discurso de divulgação
científica também é considerado único embora não o seja, como apresentaremos em nossas
análises.
Em determinadas condições de produção, a dominância de um dos sentidos, mas
outros sentidos possíveis ressoam. Por isso, podemos afirmar que toda produção discursiva é
investida em processos de significação variados. Contudo, o sentido dominante ao ser
legitimado fixa-se ideologicamente como sendo o único, o centro; cristaliza-se. Daí, o efeito
de literalidade. No caso do nosso objeto de análise, o sentido de divulgação científica como
uma atividade que reformula o texto científico em linguagem cotidiana parece ser o sentido
fixado, funcionando, no imaginário social, como um texto segundo. Nas análises, a
construção desse sentido pode ser depreendida em diferentes textualizações, desde artigos
científicos sobre o tema até verbetes de dicionários. A hegemonia desse sentido aponta para a
primazia do discurso da ciência, posto como o primeiro.
2 De que forma designar?
Ao longo de nossa incursão teórica, ou melhor, no batimento pendular entre teoria e
análise, encontramos diferentes designações para a prática de “levar ciência para o público”.
Nesse ponto, contudo, faz-se necessário explicar o que entendemos por designação. Para
tanto, tomamos emprestada a postulação teórica de Guimarães (2001); segundo o autor,
designar é um processo simbólico através do qual a prática de linguagem significa o mundo.
Em suas palavras, “designação é sempre instável, ou seja, as relações entre as palavras e o que
elas designam é uma relação instável” (GUIMARÃES, 2001, p.74). E considerando tal
instabilidade, lemos de forma sintomática o nosso corpus complexo, buscando identificar as
relações entre o dito e o não-dito.
Das designações encontradas nos textos lidos, destacamos duas: vulgarização e
divulgação. Elas inscrevem-se em diferentes materialidades e produzem efeitos de sentidos
distintos em diferentes temporalidades. Cabe ressaltar que ao falar em temporalidade não
estamos tomando a história como cronologia. Aliás, a história tem um sentido particular para
a Análise de Discurso, pois está “ligada a práticas e não ao tempo em si. Ela se organiza tendo
como parâmetro as relações de poder e de sentidos, e não com a cronologia: não é o tempo
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cronológico que organiza a história, mas a relação com o poder (a política)” (ORLANDI,
1990, p. 35).
Os primeiros periódicos brasileiros de divulgação científica podem ser datados de
meados do século XIX. Segundo Moreira e Massarani (2002, p.46), um dado interessante
surge quando analisamos as datas de criação desses periódicos. [...] também um
crescimento acentuado na criação de periódicos relacionados à ciência a partir de 1860, com
ápice em 1875”.
A partir do nosso corpus, aventamos como hipótese que a circulação da expressão
vulgarização científica pode ser encontrada em livros e jornais do final do século XIX até as
primeiras décadas do século XX. Tal hipótese pode ser pensada em relação à proposta da
historiadora Vergara (2008a). Oportuno salientar que o objetivo do seu trabalho é aproximar a
história da ciência às reflexões historiográficas, buscando refletir, mormente, sobre os usos do
conceito de vulgarização científica, no século XIX. Para a historiadora, a hipótese da
utilização dos termos pode ser observada em dois séculos consecutivos. Vejamos:
No século XIX, o termo “vulgarização científica” designava especificamente a ação
de falar de ciência para os leigos. Contudo, no século seguinte, aquele termo foi
caindo em desuso em favor de outro, que se refere a várias instâncias da
comunicação da ciência, ou seja, “divulgação científica”. (VERGARA, 2008a, p.
137).
Sua posição é que o termo passou a ser utilizado com frequência no momento de
institucionalização da ciência, ou melhor, “a vulgarização científica e a especialização das
disciplinas são processos correlatos ao longo dos oitocentos, erigindo fronteiras entre o que
era ciência ou não” (VERGARA, 2008a, p. 142). Assim sendo, a institucionalização da
ciência e a vulgarização científica estariam intimamente ligadas. É sobre esta constatação que
assenta a aceitação de ter um texto que possa ser considerado inaugural (ou ao menos de
grande relevo na história da divulgação científica) e que explicitaria a correlação entre
institucionalização da ciência e formas de divulgá-la. Trata-se de “Os estudos experimentais
no Brasil”, escrito por Louis Couty
1
e publicado na Revista Brasileira, em 1879. Segundo
Moreira e Massarani,
Documento importante para a compreensão do quadro da divulgação científica da
época foi redigido pelo biólogo francês Louis Couty, que trabalhava no Rio de
Janeiro. [...] Couty escreveu o primeiro artigo de uma coluna dedicada à nova
propaganda científica na revista Brasileira, em 1875. Nele, Couty, defendia
1
Biólogo francês que lecionou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro, a convite do imperador D. Pedro II.
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ardorosamente o desenvolvimento das ciências experimentais no Brasil e dava
ênfase especial à vulgarização científica. (MOREIRA; MASSARANI, 2002, p. 51).
Podemos ler, na citação acima, que ao mesmo tempo em que se buscava
institucionalizar as ciências experimentais no Brasil (pelo olhar do outro estrangeiro), dava-se
ênfase à sua vulgarização. Do ponto de vista discursivo, em que nos colocamos, a
institucionalização é um processo discursivo, uma vez que as instituições são pensadas e
explicitadas pelo discurso. Distanciando-se da perspectiva sociologista, Mariani (1998)
verifica que o processo de institucionalização tem sua historicidade. Podemos dizer que as
instituições que se estabelecem tornam-se visíveis por meio de suas práticas, pela circulação
de seus produtos e por suas normas e leis. A visibilidade consagrada à instituição provoca um
efeito de reconhecimento, de legitimação. Por meio desse efeito, seria possível considerar a
divulgação como uma atividade necessária para o progresso.
Uma característica da vulgarização científica do século XIX, segundo Vergara
(2008a), seria anunciar “as inovações do mundo da ciência que, a partir daquele momento,
fariam parte da cultura letrada, como eletricidade, vacina, telefone, entre outros, mesmo que o
seu princípio científico permanecesse pouco conhecido” (VERGARA, 2008a, p.140). Outra
possível interpretação relacionada às condições de produção da vulgarização científica
oitocentista seria: divulgar os “produtos” da ciência e, principalmente, sua utilidade para o
público que poderia adquirir tais inovações.
Retornando à proposta de Vergara (2008a), tudo parece indicar que, na década de
1870, o termo ‘vulgarização científica’ circulava em periódicos dedicados, em alguma
medida, à ciência. A referida autora conjetura que o uso do termo tenha passado para os
brasileiros a partir dos livros franceses. E complementa: “Uma possibilidade de contágio
estaria na obra do vulgarizador francês, Camille Flammarion, autor de Astronomia popular,
que era bastante conhecido pelo público brasileiro” (VERGARA, 2008a, p.139).
A utilização do termo também pode ser observada no título de um periódico da época:
O Vulgarisador: O Jornal dos Conhecimentos Úteis
2
, editado por Augusto Emílio Zaluar
3
entre os anos de 1877 e 1880. Conforme o que era apresentado, o periódico assumia duplo
objetivo: a) trazer informações ao povo brasileiro das então recentes conquistas da ciência e
ajudar, por conseguinte, o progresso e o desenvolvimento do país; b) explicar a importância
2
O jornal foi publicado em trinta e oito números, segundo a edição fac-símile da Biblioteca Nacional.
3
O literato, escritor e jornalista português, posteriormente radicado e naturalizado brasileiro, Augusto Zaluar
(1825-1882) escreveu Peregrinação pela Província de São Paulo (1863) e também o primeiro romance
brasileiro de ficção-científica, O Doutor Benignus (1875).
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dos assuntos científicos tratados, incentivando uma cultura científica e fazendo com que a
ciência se tornasse parte do cotidiano do público leitor. Seu objetivo era “estar ao alcance de
todas as inteligências”. Cabe interrogar quais seriam “todas as inteligências”.
De forma a identificar os efeitos de sentido do termo vulgarização científica,
apresentamos alguns recortes operados em diferentes textualidades; passando por artigos,
capítulo de livro e editorial jornalístico. Esses recortes, mais do que exemplos, são tomados
como objeto de análise de determinados discursos em circulação e nos permitem inferir se
ou não algum deslizamento na significação do termo.
Em nosso primeiro movimento da análise, buscamos observar os efeitos de sentido de
vulgarização em recortes que consiste no corte de fragmentos, de nacos do corpus dotados
de sentido de quatro sequências de quatro artigos. O primeiro artigo foi Revista científica,
de Henrique Fleiuss, publicado na revista Ilustração Brasileira, em 1876. Vale lembrar que
o recorte se apresenta como uma unidade discursiva em que se pode compreender o
funcionamento discursivo. Não um princípio único segundo o qual o recorte se efetue o
que o significa dizer que não seja regulado. Ele se faz de acordo com o objeto de análise e
varia segundo a configuração das condições de produção. Os recortes contêm sequências
discursivas (SDs) que mostram um encaminhamento da análise. Abaixo, trazemos a
sequência discursiva recortada do artigo supracitado:
SD1: A vulgarização dos conhecimentos gerais da ciência, em nosso tempo, não é uma necessidade,
é um dever imperioso para as nações que compreendem e acompanham os progressos reais da
civilização. (FLEIUSS, 1876, p.56 apud VERGARA, 2008a, p.139).
Nessa sequência, ao mesmo tempo em que coloca em pauta a necessidade de
elaboração da ‘vulgarização científica’ também aponta para a relação entre ciência e
civilização. A vulgarização seria a condição para alcançar um determinado modelo de
civilização. Destacamos a proposição relativa que compreendem e acompanham os
progressos reais da civilização que tão somente por sua organização não tem significação
transparente: pode ser tratada como uma apositiva ou uma determinativa. Se tratada como a
última, a proposição parece delimitar somente aquelas nações que compreendem e
acompanham o desenvolvimento da ciência. Funciona como uma forma de determinar as
nações: para uma nação ser civilizada deve imperiosamente vulgarizar a ciência. E, a partir do
pré-construído, põe-se em cena que o Brasil não poderia se furtar de promover tal ação para
entrar no curso do progresso rumo à civilização. De alguma forma, ressoa nessa SD a doutrina
dos três estados do desenvolvimento histórico de Comte, que na época passou a ser usada
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como referencial para compreensão do processo histórico e para o estabelecimento de ações
políticas. O modelo positivista baseado na unidade de civilização enfatizava que a
diferença entre as nações residiria no estágio em que cada uma se encontrava.
Como observou Guimarães (2004) ao apontar que é preciso tratar as palavras nas
relações de domínio que suas relações constroem” (GUIMARÃES, 2004, p.129), a
designação civilização’ pode operar sentidos de hierarquia de valores (primitivo X civilizado;
barbárie X civilização), como também de valor universal, envolvendo o sentido de progresso,
educação. uma relação de oposição que se constrói entre civilização, por um lado, e
primitivo, ignorante, exótico, por outro. Em suma, para deixar de ser exótico e selvagem, o
Brasil precisaria, imperiosamente, divulgar a ciência.
Na década de 30 do culo XX, destacamos o livro A Vulgarização do Saber, de
Miguel Ozório de Almeida, especificamente, o capítulo sob o mesmo título, no qual o autor
faz referência à dificuldade e à necessidade de vulgarizar a ciência. Vejamos:
SD2: As collecções de livros de vulgarização scientifica se multiplicam. As conferencias e cursos
publicos sobre as questões mais arduas e difficeis destinadas a pôr ao alcance de todo o mundo
noções ou conhecimentos que eram o apanagio de grupos limitados de especialistas, secundam e
completam a tarefa que visam executar as edições populares. Tudo isso demonstra que o publico
em geral tem sua attenção despertada para as coisas do saber e aspira participar do movimento
incessante das idéas, e comprehender, pelo menos em suas linhas essenciaes, as bases dos grandes
factos scientificos e a essencia das principaes leis naturaes (ALMEIDA, 1931, p. 229).
Nessa seqncia, a vulgarização científica é mostrada como uma atividade em plena
produção. Atividade que vai desde as conferências públicas até as edições populares, e tem
como um objetivo tratar das questões mais árduas e difíceis. A multiplicação da atividade
parece indicar que o público em geral tem sua atenção despertada para as coisas do saber,
ou seja, a vulgarização atenderia um apelo do público. Consideramos que ocorra nesse ponto
um deslizamento de sentidos: passa-se da nação para o público em geral. Se antes era uma
questão para o desenvolvimento civilizatório, passa-se a ser uma questão para o público ávido
pelo conhecimento científico. Em relação à designação utilizada, observamos que ao termo
vulgarização científica é conferido um caráter positivo.
De acordo com Vergara (2008a), “no Brasil, do século XIX até os anos de 1930, os
cientistas e literatos utilizavam regularmente o termo ‘vulgarização’ para designar a atividade
de comunicação com os leigos” (VERGARA, 2008a, p.140). Observamos que, na década
seguinte, a expressão “divulgação científica” pode ser encontrada em jornais. Como exemplo,
citamos um trecho do editorial do suplemento “Ciência para Todos” (CpT) um suplemento
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de divulgação científica produzido pelo jornal A Manhã durante cinco anos. Apresentamos
um trecho:
SD3: A MANHÃ ao lançar este suplemento, pretende concorrer, na medida de suas forças, para
uma obra que julga utilíssima em nosso país: a divulgação da ciência. O crescente
desenvolvimento da ciência é o que explica o magnífico progresso do mundo hoje. É a ciência que
rasga diariamente novos horizontes à indústria e vem proporcionar, em última análise, mais
felicidade para o ser humano: a cada progresso científico se acha ligado um correspondente
avanço no progresso industrial e no bem-estar da humanidade (REIS, 1948, p. 2 apud ESTEVES,
2006, p.58).
Quase duas décadas depois da publicação do livro de Almeida (1931), encontramos
no suplemento do jornal A manhã a expressão divulgação científica. Essa atividade é
exaltada como utilíssima. Provavelmente, por levar aos seus leitores os progressos da
ciência, a felicidade para o ser humano, o bem-estar da humanidade. Observamos que a
paráfrase que retoma o sentido de divulgação necessária e condição de melhoria de vida se
daria pelo progresso científico. Embora o termo utilizado seja outro, algo permanece
ecoando no processo discursivo. Consideramos ser essa uma paráfrase por substituição, em
que se estabelecem relações entre os termos e suas possibilidades de sentido. Sublinhamos
que a paráfrase não é mera reprodução, algo nesse processo desliza, falha; carrega a
possibilidade de se tornar outro.
Nas duas últimas sequências, circulam sentidos de uma atividade que se sustenta
como relevante para o público que é construído discursivamente como interessado pelas
coisas da ciência. Se na SD2 bastava que o público compreendesse, em linhas gerais, os
fatos da ciência e a essência das leis naturais, na SD2, para garantir a felicidade para o ser
humano, seria necessário conhecer o progresso científico ligado ao progresso industrial.
Nessa última sequência, tudo se passa como se os novos inventos industriais e
tecnológicos, ou como diz Pêcheux, as “múltiplas urgências do cotidiano” (PÊCHEUX,
2002, p. 32) fossem imperiosos à felicidade do sujeito pragmático.
O período que corresponde ao final do século XX e ao início do XXI é marcado por
uma profusão de designações (popularização da ciência, compreensão blica da ciência,
alfabetização científica, entre outros). Se, no Brasil, do século XIX até os anos 30 do
século XX, cientistas e literatos utilizavam com regularidade a expressão ‘vulgarização
científica’ para designar a atividade de “comunicação científica para leigos”, o termo
parece ser rechaçado nas décadas seguintes. A última sequência foi recortada do artigo
“Acerca do método e do conhecimento científico”, de Ronaldo Mota, publicado no
periódico Ciência & Ambiente, em 2001. Vejamos a sequência a seguir:
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SD4: Tal constatação torna ainda mais importante que a ciência seja popularizada sem ser
vulgarizada, o que se obtém pelo incremento substancial da educação científica da população.
(MOTA, 2001, p. 20).
Acreditamos que, no trecho destacado, vulgarizada retoma o sentido de reles, chulo,
grosseiro. A ciência deve ser popularizada, mas não banalizada. É possível observar, nos
textos contemporâneos que fazem circular os conhecimentos científicos na sociedade, que se
interditaram, silenciariam, na nossa história, determinadas designações. Ou melhor, não é
mais possível falar vulgarização científica tal como era possível no início do século XX, pois
um sentido se fixou (e outros foram silenciados): a vulgarização parece ser um termo que não
pode estar relacionado à ciência.
O termo divulgação científica, inserido no período do desenvolvimento nacionalista
industrial, parece ser uma atividade útil para mostrar, ser uma vitrine, de tal desenvolvimento.
Quais teriam sido as condições de (re)significação e de silenciamento
4
/interdição da
designação vulgarização científicaapós a década de 1930? Quais teriam sido os gestos de
distinção entre ‘vulgarização’ e ‘divulgação’ em determinadas condições de produção?
Uma forma de tentar entender os processos de (re)significação assenta-se na
possibilidade de produção de efeitos de sentidos em outras textualizações. Propomos analisar
a distinção entre os termos a partir de dicionários de língua portuguesa. De acordo com
Auroux (1992), os dicionários são instrumentos linguísticos, ou seja, são tecnologias de
gramaticalização um processo que conduz à descrição e à instrumentação das línguas.
Mazière (1989), por seu turno, toma o dicionário como um discurso. Dessa forma, fizemos a
leitura do dicionário como um discurso, analisando a parte do corpus composta por verbetes
de dicionários monolíngues de Língua Portuguesa.
3 Os sentidos mudam e o uso das designações também: a leitura dos
dicionários
Nunes (1997), em estudo dedicado à formação do léxico à luz da História das Ideias
Linguísticas e da Análise do Discurso, propõe que a formação do léxico está ligada, de um
lado, às políticas linguísticas que definem a produção de um saber lexicográfico (na relação
4
Nesse trecho, sublinhamos a contribuição teórica de Orlandi (1990) sobre a política do silenciamento. Para a
mesma, é pelo silenciamento que “um discurso diz para não deixar que se digam as ‘outras palavras”
(ORLANDI, 1990, p. 122).
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com as instâncias de um saber em uma formação social), e de outro, às próprias formas
discursivas através das quais esse saber se apresenta nos instrumentos linguísticos mais
especificamente nos dicionários. A elaboração desses, por seu turno, está ligada a
transformações significativas na conjuntura histórica e linguística, como o papel das teorias,
dos conceitos e das instituições envolvidas. Isso significa dizer que os dicionários são
produzidos por práticas social e historicamente determinadas; em suma, as palavras são
resultantes das relações sociais e históricas, relações essas que são complexas e, por vezes,
polêmicas ou contraditórias (cf. NUNES, 2010).
Tomamos o dicionário como um instrumento linguístico constituído por uma
historicidade que propicia desconstruir paulatinamente, no interior dos estudos de Análise do
Discurso, a imagem do dicionário como portador de significações fixas. Considerando a
proposta de Nunes (2010), a leitura do dicionário promove a compreensão que certos
sentidos que aparecem e se sedimentam, estabilizam-se; no entanto, ao mesmo tempo, tais
sentidos sempre estão sujeitos a serem outros, isto é, estão sujeitos aos equívocos, aos
deslizamentos de sentido, às contradições entre diferentes posições de leitura.
O funcionamento das definições é sempre instável e que elas são criadas em
determinadas condições de produção, as designações ‘vulgarização’ e ‘divulgação’ científica
também se dão em um processo de produção histórica. Para esta seção do artigo, consultamos
dicionários monolíngues de Língua Portuguesa, observando, a princípio, os verbetes
vulgarização e divulgação e, posteriormente, vulgarizar e divulgar. Podemos dizer que os
dicionários se mostraram arquivos documentais que possibilitam a compreensão da distinção
entre as duas designações. Contudo, antes mesmo de mergulharmos nos procedimentos
analíticos, justificamos a constituição da segunda parte do nosso corpus por intermédio das
palavras de Nunes (2006):
o dicionário é visto geralmente como um objeto de consulta que apresenta os
significados das palavras com a certitude do saber de um especialista e
eventualmente com a legitimidade de autores reconhecidos que abonam as
definições [...]. Trata-se de um dos lugares que sustentam as evidências dos sentidos,
funcionando como um instrumento de estabilização dos discursos. Por constituir
nesse espaço imaginário de certitude, sustentado pela acumulação e pela repetição, o
dicionário é um material interessante para se observar os modos de dizer de uma
sociedade e os discursos em circulação em certas conjunturas históricas (NUNES,
2006, p. 11).
Interessa-nos observar o modo como o dicionário produz sentidos nas diferentes
conjunturas históricas dos séculos XIX a XXI. Afinal, “como qualquer discurso, o dicionário
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tem uma história, ele constrói e atualiza uma memória, reproduz e desloca sentidos,
inscrevendo-os no horizonte dos dizeres historicamente constituídos” (NUNES, 2006, p.18).
Nessa perspectiva, Nunes (2006) considera o dicionário como um espaço de memória
discursiva, ou seja, um trabalho de seleção e de retomada do -dito. E completaríamos: um
trabalho da memória que sustenta dizeres futuros.
O dicionário divide os sentidos, lembrando que a divisão é um processo ideológico,
porquanto, político. Oliveira (2006) assume que o dicionário divide o real da língua para
compor sua unidade, considerada, no caso, a língua portuguesa, língua de Estado. Logo,
buscar as distinções ou aproximações entre divulgação ou vulgarização não é uma questão
meramente linguística, mas política.
Cabe aqui outra observação sobre o que compreendemos por “definir”. Para tal,
tomamos emprestada a consideração de Nunes (2006):
Definir uma palavra é atribuir uma unidade imaginária a uma porção do real,
unidade que falha, desvanecendo-se logo e criando o desejo de complementação, de
reformulação, de reedição, numa repetição que se desdobra na medida em que a
história lhe lugar. Além disso, definir as “palavras” e suas significações é
esquecer que se está definindo (NUNES, 2006, p. 22).
A definição do dicionário fornece a ilusão de estabilidade, uma vez que as palavras
aparecem como se tivessem sentido em si mesmas, produzindo a ilusão de literalidade. No
entanto, como vimos na primeira seção, os sentidos são sempre filiados a domínios de saber,
ou seja, a formações discursivas.
Além das considerações expostas, ainda cabe lembrar que muito embora termos
possam circular em discursividades contemporâneas aos dicionários, esses não estão
necessariamente presentes nos dicionários. Vergara (2008a) destacar a primeira aparição do
termo ‘vulgarização científica’ em dicionário francês. Tudo parece indicar que o termo
‘vulgarização’ surge nos dicionários brasileiros como uma forma de transferência dos
dicionários franceses.
Segundo Bruno Béguet, o termo “vulgarização” seria raro antes do século XIX, e foi
apresentado como um neologismo no Dictionnaire de la langue française de Littré,
em 1881. Esse dicionário, que era bastante usado por nossos intelectuais do fim do
século XIX, atribui sua origem a Mme de Stäel, que, no início do século, utilizara a
palavra vulgarité como algo que perde sua distinção e amplia seu uso e domínio. Já
Bensaude-Vincent e Rasmussen assinalam que a “maioria dos dicionários data a
aparição do verbo vulgariser de 1826 e o substantivo vulgarisation nos anos 1850-
1870 a expressão vulgarisation scientifique foi utilizada por Zola em 1867”.
(VERGARA, 2008a, p. 140)
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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Embora o termo dicionarizado só seja identificado a partir da cada de 1880, a
historiadora assume que, mesmo antes de sua entrada nos dicionários, a expressão
‘vulgarização científica’ circulava intensamente tanto em âmbito internacional quanto
nacional, em consequência da “proliferação de veículos e ações a ela destinadas, tais como
revistas, jornais, palestras públicas e exposições” (VERGARA, 2008a, p.140). Nunes (2010),
contudo, enfatiza que:
As lacunas, do ponto de vista discursivo, não são erros ou defeitos do dicionário,
mas fazem parte mesmo de sua constituição. Todo discurso silencia necessariamente
outros discursos [...]. Lidar com a falta de palavras no dicionário ou mesmo na fala
cotidiana, é lidar com a incompletude da linguagem, que afeta qualquer discurso
(NUNES, 2010, p. 13).
Iniciamos a construção de um arquivo com verbetes encontrados no século XIX,
período em que apareceram os primeiros dicionários de língua portuguesa (cf. NUNES,
2006). Os primeiros verbetes a compor o corpus foram retirados do Dicionário da Língua
Portuguesa, de António de Morais Silva (1813), por ser considerado o primeiro dicionário
monolíngue da Língua Portuguesa e por representar a consolidação da ngua nacional em
Portugal (cf. Nunes, 2006). Além desse, recortamos verbetes de mais três dicionários, quais
sejam: Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza, de Francisco Caldas Aulete
(1948); Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Ferreira (1986); Dicionário
Houaiss da Língua Portuguesa, de Antonio Houaiss (2001). A tabela a seguir traz os verbetes
(entendidos como resultantes de práticas sócio-históricas) dos substantivos ‘vulgarizar e
‘divulgar’ presentes nos quatro dicionários elencados anteriormente.
Tabela 1 A designação dos substantivos
Dicionário da
Língua
Portuguesa, de
António de
Morais Silva
(1813)
edição
Novo Dicionário
da Língua
Portuguesa, de
Aurélio B. de H.
Ferreira (1986)
Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa, de Antonio Houaiss
(2001)
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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VULGARIZAÇÃO
Vulgarisação,
s.f. O acto de
vulgarizar.
vulgarização s.f.
Ato ou efeito de
vulgarizar(-se).
vulgarização s. f. (1789 cf.MS) 1
ato ou efeito de vulgarizar(-se) (a
v. da arte) (a v. do sexo) 2 LEX.
fenômeno neológico que se
constitui na passagem de um
termo científico para o
vocabulário da língua corrente.
ETIM vulgarizar+ção; ver
vulg(i/o); f.. hist. 1789
vulgarisação. SIN/VAR ver
sinonímia de divulgação
DIVULGAÇÃO
Divulgaçâo, s.f.
O acto de
divulgar; o
estado da coisa
divulgada.
divulgação [Do
lat. divulgatione].
S. f. Ação de
divulgar(-se);
vulgarização,
propagação
difusão.
divulgação s. f. (1614 SGonç) ato,
processo ou efeito de tornar
pública alguma coisa; difusão,
propagação, vulgarização. ETIM
lat. divulgatĭo, ōnis ‘ação de
espalhar , publicar, divulgar; ver
vulg(i/o); f. Hist. 1614 divulgaçon.
SIN/VAR difusão, disseminação,
generalização, preonício,
propogação, propaganda,
propalação, publicação,
publicidade, reclamo,
vulgarização.
A construção contígua dos quatro verbetes auxilia-nos a explicitar a paráfrase de um
dicionário a outro. Os verbetes dos substantivos vulgarização e divulgação remetem para o
‘ato’ ou ‘ação de’. É interessante abrirmos espaço para uma consideração dessa recorrência.
De acordo com Nunes (2006), a emergência da definição ‘ato de’, a partir do dicionário de
Morais, coloca a ação do sujeito como origem do sentido, o que corresponde à passagem do
sujeito religioso (de virtudes) ao sujeito jurídico (responsável pelos seus atos). Temos, então,
nos dicionários analisados a marca, na materialidade linguística, dessa passagem. Por
exemplo, no dicionário de Caldas Aulete (1948), a “acção de divulgar” é exemplificada o
seguinte trecho: Sempre tinham procurado conciliar o zêlo de divulgação das verdades
religiosas com os interesses mundanos e commerciaes”.
Com exceção do dicionário de Antonio de Morais, nos demais é possível observar o
estabelecimento de uma relação de sinonímia mostrada que é sugerida, internamente, no/pelo
próprio dicionário: nos verbetes de ‘vulgarização’ faz-se menção ao termo divulgação; à
designação do último o leitor chegaria por via própria caso consultasse cada verbete
específico. Já no dicionário Houaiss (2001), a relação de sinonímia é referida de forma
mostrada e marcada, visto que a indicação ver sinonímia de divulgação produz um efeito
de indicação direta de consulta ao outro verbete, como se o próprio dicionário apontasse para
um fora-dentro (fora do verbete, mas dentro do dicionário), produzindo um efeito de
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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complementaridade. Em ambos os casos, apaga-se a constituição da historicidade e produz-se
um efeito de sustentação entre os próprios verbetes.
Em relação à ciência, somente no dicionário Houaiss (2001) que se apresenta a
vulgarização como um neologismo atrelado a passagem de um termo científico para o
vocabulário da língua corrente. Tal passagem pode ser entendida como um ato de traduzir
um termo especializado para o seu correspondente em língua cotidiana. Já ‘divulgação’,
embora tomada como sinônimo seria o “efeito de tornar pública alguma coisa”. O pronome
alguma designaria conjuntos lexicalmente não nomeados, ou melhor, não especificados
linguisticamente, instaurando ambiguidade pela ausência de textualização do referente. De tal
modo, poder-se-ia divulgar ciência, religião, artes, literatura.
A partir da análise dos verbetes dos substantivos, procedemos a outro gesto de análise,
concentramo-nos nos verbos, ou melhor, no “ato ou ação de”. Reproduzimos, na tabela
abaixo, os verbetes retirados dos quatro dicionários.
Tabela 2 A designação dos verbos
Dicionário da
Língua Portuguesa,
de António de
Morais Silva
(1813) 2ª edição
Dicionário
Contemporâneo da
Língua Portugueza, de
FJC Aulete (1948)
Novo Dicionário da
Língua Portuguesa, de
Aurélio B. de H. Ferreira
(1986)
Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa, de
Antonio Houaiss (2001)
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
50
VULGARIZA
R
Vulgarisár, v.at.
Reduzir ao estado
de plebeu, e
homem vulgar. §
Fazer commum,
com abalimento da
nobreza,
graduação; v.g.
vulgarizar as
honras,
magistrados,
insignias, e
graduação de
nobreza; os foros
de fidalgo, os
habitos de Ordens.
§ Vulgarizar o
corpo, devassalo,
prostituilo “mulher
que se vulgarizava
ao que primeiro
chegasse”.§ fig.
Vulgarizar a fama,
dando-a a coisas
vulgares. §
Traduzir em
vulgar. § Publicar a
todos.
Vulgarizar (vul-gha-ri-
zar), v.tr. tornar
notório ou mui
conhecido; propagar,
vulgar, divulgar; pôr
ao alcance , ao
conhecimento muitos
ou de todos;
popularizar:
Vulgarizar a sciencia.
║Abandalhar.
║Traduzir em
vulgar.║ , v. pr.
Tornar-se vulgar,
tornar-semui
conhecido;
popularizar-se: Esta
xacara é das que
menos se
vulgarizaram.
(Garret.)
Abandalhar-se: ... Não
se deixando vulgarizar
e ter em pouco. (Fil.
Elys.). ║F.
Vulgar+izar.
Vulgarizar [De vulgar
+izar] V.t.d. 1 Tornar
vulgar ou notório;
propagar, divulgar,
difundir, vulgar:
vulgarizar uma doutrina;
“O gaiato ... é no mundo
musical um meio que a
providência destinou a
vulgarizar os cantos que
devem tornar-se
populares”.(Latino
Coelho, Tipos nacionais,
p.29). 2 Fazer comum.
Acanalhar, abandalhar. P.
4 Tornar-se muito
conhecido, popularizar-
se: “Só depois dos
românticos ... veio a
vulgarizar-se o verso
dodecassílabo sem
qualquer pausa ou acento
na Sexta sílaba, como o
queria Hugo [Vitor
Hugo]”. (Melo Nóbrega,
O Soneto de Arvers,
p.88). 5 Abandalhar-se,
acanalhar-se.
Vulgarizar v. (1702 cf.
VPM)1 t. d. e pron. difundir(-
se) de um grupo restrito para
círculos mais amplos; tornar(-
se) comum; popularizar(-se)
(v. o estilo clássico) (vários
termos científicos
vulgarizaram-se em vários
níveis da língua) 2 t. d. e
pron. tornar(-se) muito
conhecido, divulgar(-se),
propagar(-se), popularizar(-
se) (uma propaganda bem
planejada vulgarizou a
imagem do artista por todo o
país) (no Brasil, a ópera não
se vulgarizou). 3 t. d. e pron.
tornar(-se) muito comum;
banalizar(-se) (v. uma moda)
(este estilo vulgarizou-se) 4
Uso: pejorativo. Fazer perder
ou perder a dignidade, a
respeitabilidade; tornar(-se)
reles (v. os costumes) (v.-se a
moral). ETIM vulgar+izar;
ver vulg(i/o); f.. hist. 1702
vulgarizar; 1789
vulgarisação. SIN/VAR ver
sinonímia de divulgar.
DIVULGAR
Divulgar, v.at.
Publicar, espalhar
alguma notícia,
nova, vulgarizá-la:
divulgárão a Fe no
Oriente: divulgar
feitos em Historia.
Goes.
Divulgar (di-vul-ghár),
v. tr. tornar público,
fazer conhecido de
todos ou do maior
numero; apregoar,
propagar, diffundir. A
grandeza e a variedade
de successos de seu
tempo em paz e guerra
estão merecendo
serem divulgadas por
muitas línguas e
celebradas por muitas
pennas. (FR. L. De
Sousa)║ , v. pr.
tornar-se público ou
conhecido; propagar-
se: Divulgou-se o
successo na cidade
(Camilo) ║F. lat.
Divulgare
Divulgar [Do lat.
divulgare] V.t.d. 1 Tornar
público ou notório;
publicar; propagar,
difundir, vulgarizar: Os
jornais divulgaram o
plano governamental;
“Em O Constitucional
de1883, Alberto Torres
divulga diversos
poemas”. (Barbosa Lima
Sobrinho, Presença de
Alberto Torres, p.37). P.
2 Tornar-se público ou
conhecido; propagar-se,
difundir-se | Conj.: v.
lavar |
Divulgar v.(sXV cf.VPM) 1 t.
d. tornar pública (alguma
coisa desconhecida por
outrem); propagar, publicar
(d. o teor do documento). 2
pron. promover-se, fazendo-
se conhecer. (diante dos
fotógrafos, aproveitou a
oportunidade para d.-se).
GRAM. a respeito da conj.
Deste verbo, ver -algar.
ETIM lat.
divulgo,as,ĕvi,ātum,are
‘tornar público, publicar,
divulgar’; var. devulgar, com
alt. equivocada de grafia; ver
vulg(i/o); SIN/VAR alastrar,
apregoar, despargir, desparzir,
difundir, dispersar, asseminar,
distribuir, espalhar, espargir,
esparzir, expandir, irradiar,
pregar, propagandear,
propalar, publicar, publicitar,
semear, transmitir, vulgarizar;
ver tb. sinonímia de
manifestar.
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
51
No primeiro dicionário
5
, o verbete vulgarizar aponta para uma trajetória de ações:
“uma ideia de perda da ‘aura’ e deslocamento de valores, do que era antes nobre ser agora
plebeu, culminando com a corrupção máxima que seria a prostituição” (VERGARA, 2008b,
p.325-326). Alguns dos sentidos atribuídos a vulgarizar não estão expostos no verbete de
‘divulgar’. Vulgarizar é reduzir a plebeu, condição de classes inferiores. A plebe (o vulgo) é
posta em contraste com a nobreza fazer commum com o abalimento da nobreza
6
. Um
sentido também atribuído é o aspecto da prostituição do corpo. Reconhecemos que, no século
XIX, circulavam sentidos outros em relação ao ato de vulgarizar. Em última instância, o
que estaria em jogo não é a atividade de vulgarização, mas o sujeito que realiza a ação. Esse
sim é considerado inferior a outro sujeito. Em divulgar, por seu turno, cria-se um
deslizamento: publicar, espalhar alguma notícia, nova, vulgarizá-la: dilvulgarão a Fe no
Oriente.
Outro aspecto a ser assinalado é a questão da tradução em linguagem acessível/língua
vernácula (em vulgar) que proporcionaria a publicação a todos (nobreza e plebe?). Escrever
em vernáculo, e não em latim, fez com que as palavras tivessem determinados sentidos e não
outros. Podemos conjecturar que o vernáculo foi um “lugar politicamente significado da
articulação da ciência com a religião e o poder” (ORLANDI, 2002, p. 76). A inscrição da
ciência em vernáculo, em língua vulgar, apresenta outro sentido além daquele encontrado nos
dicionários: o vulgar indica o lugar do fugidio. A tradução é trazida como um dos sentidos
possíveis atividade de reformulação de um texto original em outro código no caso, a
língua utilizada pela plebe, o vulgar menor/inferior a língua vernácula. Tornamos, em
seguida, as palavras de Vergara (2008a):
Para melhor entender essa questão, é importante ver o que significa “tradução”, cujo
sentido atual vem da Renascença quando o verbo traducere foi introduzido pelos
humanistas italianos, para designar a “reprodução” do “original” em outro código.
(VERGARA, 2008a, p. 138).
O efeito de sentido de vulgarização como tradução remete à questão da mediação:
um primeiro momento de trabalho intelectual de produção de conhecimento pelo cientista
5
Nas edições seguintes do Dicionário da Língua Portuguesa de António de Morais Silva (1813), é possível
encontrar alguns acréscimos ao verbete. Na edição de 1891, tem-se “tornar alguma coisa geralmente conhecida,
sabida, tornar-se geral, vulgar, espalhar-se muito; divulgar-se”. De acordo com Vergara (2008b), somente na
décima edição (1945), nota-se outro uso para o termo, constando “ato ou efeito de divulgar. Vulgarização de
conhecimentos científicos especializados, pondo-se assim ao alcance do maior número possível de indivíduos,
isto é, do vulgo; por definição” (VERGARA, 2008b, p. 327).
6
Devemos recordar em quais condições de produção esse dicionário foi produzido. Em 1786 (ou na segunda
edição em 1813), Portugal e Brasil viviam sob a égide de uma monarquia, logo a distinção entre nobreza e plebe
era posta.
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
52
e um segundo, no qual o conhecimento será transmitido em outro código” para o público (o
povo) que, por não ser conhecedor ou ter adquirido o ‘código da ciência’ (ter sido iniciado),
não consegue compreender os conhecimentos geridos.
O Dicionário Contemporâneo da Língua Portugueza, de F. J. C. Aulete, editado pela
primeira vez em 1881, encontramos os mesmos verbetes. Contudo, na edição de 1948, é
possível encontrar a expressão Vulgarizar a sciencia. Torna-se possível verificar que o termo
vulgarização científica
7
aparece dicionarizado a partir da década de 40 do século XX. Outros
sentidos são atribuídos aos verbos em questão, como, por exemplo: pôr ao alcance, ao
conhecimento de muitos ou de todos. Embora os dois verbos sejam indicados com uma
suposta relação de sinonímia, outros sentidos são estabelecidos para cada um. Ressaltamos
que entre a paráfrase de um verbete e a de outro dicionário há modos de dividir os sentidos.
No verbete vulgarizar, o lugar do plebeu cede lugar à palavra todos. Vulgarizar as
honras torna-se popularizar. Não mais a distinção entre nobreza e plebe. uma distância
entre plebeu e todos, que plebeu é constituído na relação com o monarca, e todos ao
alcance, ao conhecimento muitos ou de todos estaria marcada a posição de cidadãos da
República (“Todos iguais perante a lei”). uma indeterminação que constitui a relação do
sujeito com o jurídico. Nas diferenças lexicais de cada verbete, é possível identificar as
marcas de passagem da ordem religiosa à jurídica, uma vez que o léxico da ordem jurídica é
introduzido deslocando o léxico da ordem anterior. Ainda podemos sublinhar a relação que se
estabelece entre o vulgar e o popular (do povo
8
, do povo brasileiro?) e o silenciamento em
relação à questão de vulgarizar o corpo (da mulher). Vejamos que mesmo apagando essa
referência, ao relacionar parafrasticamente com abandalhar-se, algo continua ressoar: perder
a dignidade, a seriedade, a respeitabilidade.
No segundo verbete recortado, divulgar é definido como tornar público, fazer
conhecido de todos ou do maior numero; apregoar, propagar, diffundir. No verbete, não está
presente o sentido de tradução, tampouco o termo ‘divulgação científica’ é dicionarizado. No
entanto, permanece a indicação mostrada de sinonímia entre divulgação e vulgarização. Vale
7
Vergara (2008b) defende que, provavelmente, a expressão teria passado para o vocabulário da língua
portuguesa a partir de livros franceses. Para a autora, nos anos 70 do século XIX (com o surgimento de
publicação especializada), a expressão “vulgarização científica” começa a suplantar a expressão mais antiga de
“ciência popular”. A autora aponta que “na França, até hoje a expressão vulgarisation scientifique é um consenso
entre os especialistas da área” (VERGARA, 2008a, p.138). E por que essa designação se mantém na língua
francesa? outra historicidade que constitui essa ngua; outras relações de tensão, de divisão política de
sentidos.
8
Orlandi (2006) faz uma leitura sintomática da palavra ‘povo’. Para a autora, ‘povo’ (sujeito público) é o lugar
do ‘irrealizado’, é o “lugar de uma declinação significativa da história” (ORLANDI, 2006, p.10) e não uma
categoria de conteúdo. Ele, o povo, é condição do movimento na história.
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
53
mencionar que, nos verbetes dos dois termos recortados do dicionário Aulete, a presença
de exemplos e de suas fontes, em geral de literatos. Ponderamos que “a seleção da forma do
exemplo é decisiva para a concepção do dicionário” (NUNES, 2010, p. 15). Além disso,
Os exemplos também podem ser objeto de uma leitura atenta dos discursos em
circulação. Quando não trazem exemplos, a imagem que se tem é de que as palavras
e as definições existem independentemente de quem as pronuncia. quando
exemplos, eles se apresentam em vários tipos: linguísticos, literários, de falas
cotidianas, exemplos elaborados pelo lexicógrafo, dentre outros. (NUNES, 2010,
p.14-15).
No primeiro verbete recortado do Dicionário Aurélio (1986), uma série de relações
de sinonímia para designar vulgarizar, em que os termos, tomados um pelo outro, criam
efeitos metafóricos
9
. Essa série pode ser lida como toma vulgar ou notório, propagar,
difundir, divulgar; vulgar: vulgarizar uma doutrina. O complemento do verbo transitivo
direto, quando preenchido, é feito de forma indeterminada e/ou indefinida como em
vulgarizar uma doutrina. Os exemplos que seguem cada série parafrástica acabam
preenchendo a lacuna promovida pela indeterminação
10
: cantos, verso dodecassílabo.
Interessante notar que os exemplos são retirados de outras textualidades e acompanhados da
indicação de sua fonte. Ao final do verbete, outro sentido apresentado é abandalhar-se,
acanalhar-se; todavia, sem exemplos. Para esse sentido não haveria necessidade de exemplo?
Assume-se que “todos sabem o que é X”?
No verbete divulgar, do mesmo dicionário, também apresentação de uma série de
relações de sinonímia, sendo que desta vez os sentidos atrelados à difusão de informação
ganham destaque. Embora seja possível observar a inserção de exemplos, verificamos que não
ocorre a atribuição de autoria a todos eles. Em Os jornais divulgaram o plano governamental
um exemplo que acena para a questão da divulgação como uma forma de comunicar, de
levar informação não qualquer registro de sua fonte. Talvez tenha sido elaborado pelo
sujeito lexicólogo como uma forma de inserir sentidos que circulavam em determinadas
discursividades mais contemporâneas.
No Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (2001), observamos os mesmos
processos de designação presentes nos dicionários analisados. Em vulgarizar alguns sentidos
9
Entende-se por efeito metafórico o “fenômeno semântico produzido por uma substituição contextual para
lembrar que esse ‘deslizamento de sentido’ entre x e y é constitutivo do ‘sentido’ designado por x e y
(PÊCHEUX, 1997, p. 96).
10
O funcionamento de inserção do exemplo como uma forma de preencher a indeterminação discursiva é
identificado nos quatro dicionários analisados.
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
54
são retomados (difundir, popularizar, etc.) e, em especial, ao que pode ser relacionado ao
campo da ciência: vários termos científicos vulgarizaram-se em vários níveis da língua.
Nesse trecho, a questão da vulgarização científica atrelada à tradução parece ressoar (e com
ela a questão de que existem níveis de língua que podem ser usados para vulgarizar a ciência).
Todavia, destacamos o que aparecer como uma excrescência: 4 Uso: pejorativo. Fazer perder
ou perder a dignidade, a respeitabilidade; tornar(-se) reles (v. os costumes) (v.-se a moral).
A partir de sua indicação etimológica, buscamos em outros verbetes do dicionário acepções
para o vocábulo vulgar, das quais destacamos: relativo ou pertencente à plebe, ao vulgo;
popular; que não foge à ordem normal, não se destaca; banal, comum, corriqueiro,
ordinário, usual; de qualidade inferior; baixo, chulo, grosseiro, reles; que se sabe; notório,
sabido; a língua vernácula. E continua mais adiante pôr em vulgar: 1 traduzir algo de outra
língua para a ngua materna de alguém: traduzir em vulgar. 2 dizer ou traduzir (algo feito
ou dito antes) em outras palavras mais simples; traduzir em vulgar. Embora nos verbetes
vulgarizar e divulgar haja uma indicação de sinonímia, algo desloca, fala de outro lugar, uma
vez que o sentido apontado como pejorativo não consta na designação de ‘divulgar’. Para
esse, abre-se uma nova possibilidade de sentidos com a indicação de ver tb. sinonímia de
manifestar.
Nos verbetes recortados, as definições são efetuadas do ponto de vista de quem se
identifica com o centro urbano. No entanto, não pudemos verificar nos dois dicionários
publicados após a década de 1950 a inclusão da expressão divulgação científica. Devemos
registrar que, nos dicionários, as designações podem se tornar desatualizadas ou atualizadas
em relação aos discursos em circulação. Isso implica dizer que “o dicionário, desse modo, é
um observatório dos discursos em circulação, trata-se de notar quais ele coloca em circulação
e quais ele silencia” (NUNES, 2010, p.15). O silenciamento dessa expressão pode estar
relacionado a uma determinada concepção de dicionário e de prática lexicográfica mais
voltada para aspectos históricos e etimológicos.
4 Algumas considerações
Como os processos históricos de significação estão sempre em movimento, os sentidos
podem ser ressignificados ou de-significados “significando pela censura e pela interdição”
(ORLANDI, 2002, p. 47). Ao contrapor as várias textualidades analisadas, observamos alguns
deslizamentos de sentido. A expressão vulgarização científica está inserida em uma rede de
Polifonia, Cuiabá-MT, v.25, n. 37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
55
sentidos na qual a tradução e a informação tornam-se o centro embora outros sentidos
também circulem. Os termos científicos seriam traduzidos em linguagem comum, ou seja, em
uma linguagem vulgar e, desta forma, as informações científicas seriam acessíveis a todos.
Observamos nas sequências recortadas e nos verbetes de dicionário, uma aproximação
e um distanciamento das duas definições. E nos interrogamos: por que um sentido pejorativo
teria sido atrelado ao termo vulgarização científica? Historiadores tendem a explicar o sentido
depreciativo de vulgarização remetendo-o a um fato histórico: a forte influência da cultura
francesa até o início do século XX cedeu lugar, no pós-guerra, a influência estadunidense
(VERGARA, 2008a). Não deixamos de considerar essa influência, no entanto, interrogamos
sobre os gestos de distinção entre vulgarização e divulgação no contexto brasileiro. Vergara
(2008a), por seu turno, assinala que o desconforto com o termo poderia ser advindo do seu
étimo latino:
Se em um determinado momento utilizar o termo “vulgarização” não trazia nenhum
desconforto, a ampliação do conceito de cidadania pode ter acessado a lembrança de
que o vulgus na Roma clássica era uma categoria inferior que não votava, diferente
de populus, os cidadãos. Essa explicação pode nos dar algumas pistas sobre a atual
utilização de divulgação ou popularização da ciência, no Brasil, e divulgación, em
outros países da América Latina. (VERGARA, 2008a, p. 137)
Não nos parece que a utilização do termo causasse desconforto. Como pudemos
depreender com a leitura dos dicionários, outros efeitos de sentido eram produzidos. Do
ponto de vista discursivo, falamos de sentidos que se confrontam nas relações contraditórias
da história. Como as palavras não carregam sentidos, a ambiguidade e a contradição
identificadas nas designações estão ancoradas nas diferentes e heterogêneas matrizes de
sentido. Outra forma de designar a “comunicação da ciência a um público leigo” foi
produzida historicamente. Em um mundo “objetivado” pela ciência, considerada o único
conhecimento “verdadeiro”, foi necessário realizar a “comunicação da ciência a um público”
de forma prestigiada/moralizada.
No Brasil, no final do culo XIX e, principalmente, nas primeiras décadas do século
XX, acompanhou-se o estabelecimento de uma política médico-jurídica que difundia regras
ligadas à higiene social e a costumes ordeiros. Segundo Abreu (2004),
para muitos juristas, médicos e políticos preocupados com a reforma e moralização
dos costumes populares, realizar esta tarefa era um enorme desafio, posto que
consideravam os populares em geral, e os negros em particular, como portadores
dos supostos vícios da pobreza e da escravidão, tais como, a propensão à doença, a
falta de hábitos, a tendência a ociosidade, a não preocupação com a educação dos
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filhos e, por extensão, a não valorização dos laços de família, do casamento e da
honra feminina (ABREU, 2004, p.291 nossos grifos).
Em uma nova organização social e urbana, os populares (miscigenados, negros,
pobres) considerados inferiores (assim como os plebeus) foram lançados para as regiões
periféricas das cidades. E assim também seus supostos vícios da pobreza inclusive o da
prostituição! No trecho citado, um discurso civilizatório da instrução e nele perpassa a
noção de urbanidade.
O sentido de “vulgarização” entendido como “referente ao povo”, especificamente, ao
povo brasileiro, fez-se significar neste gesto de distinção entre ‘vulgarização’ e ‘divulgação’
científica. Mas o sentido de inferioridade ainda ressoa na definição de ‘divulgação’, visto ser
essa tomada, em muitos estudos, como um texto-segundo.
As análises dos verbetes de dicionários nos permitiram compreender que as duas
palavras passaram por um processo de ressignificação. Ou melhor, foram processos de
redivisões de sentidos atrelados a uma reforma moralizante da sociedade. Se somarmos a isso
as análises das sequências anteriores, podemos dizer que a reforma foi em prol de um
progresso industrial, tecnológico e urbano a serviço da administração social dos sujeitos.
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