Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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Reflexões enunciativas acerca do ensino na área de linguagem:
entendendo projetos de dizer
Enunciative Reflections About Teaching in the Area of Language:
Understanding Speech Projects
Nathan Bastos De Souza
1
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar)
Fabiana Giovani
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
Resumo
O objetivo deste artigo é compreender os projetos de dizer inscritos em textos produzidos por quatro alunos do
ensino médio politécnico que participaram de uma sequência didática desenvolvida com base na teoria dos
gêneros de base bakhtiniana em interlocução com os estudos da Escola de Genebra. Os objetos de análise são as
produções finais dos quatro alunos (resumos de um conto) e são estudados à luz do paradigma indiciário de
Carlo Ginzburg.
Palavras Chave: projeto de dizer; gêneros do discurso; estudos bakhtinianos.
Abstract
The aim of this article is to understand the speech projects in texts produced by four polytechnic high school
students who participated in a didactic sequence developed on the basis of Bakhtin's theory of genres in
interlocution with the studies of the Geneva School. The objects of analysis are the final productions of the four
students (summaries of a short story) and are studied in the light of Carlo Ginzburg’s evidential paradigm.
Keywords: speech project; genres; Bakhtinian studies.
Resumen
1
Agradeço a oportunidade de bolsa CAPES.
Polifonia, Cuiabá-MT, v. 25, n.37.1, p. 01-170, jan.-abril.2018.
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El objetivo de este artículo es comprender los proyectos de decir inscriptos en textos producidos por cuatro
alumnos del nivel medio de enseñanza que participaron de una secuencia didáctica desarrollada con base en la
teoría de los géneros de base bajtiniana en interlocución con los estudios de la Escuela de Ginebra. Los objetos
de análisis son las producciones finales de los cuatro estudiantes (resúmenes de un cuento) y son estudiados a la
luz del paradigma indiciario de Carlo Ginzburg.
Palabras clave: proyecto de decir; géneros del discurso, estudios bajtinianos.
Introdução
A sala de aula é por excelência o lugar de produção de conhecimento e certo tempo
alguns estudiosos da linguística têm se preocupado em problematizar o que se faz nesse
ambiente.
É feita, neste texto, uma revisão bibliográfica e em seguida, avaliamos os resultados de
uma sequência didática sobre o gênero “resumo” aplicada por um bolsista de Iniciação à
Docência, na área de Letras - Língua Portuguesa. A sequência didática contou com 6 (seis)
h/a de prática de sala de aula foi aplicada em uma turma de Ensino Médio politécnico, no
turno matutino, em uma escola da rede estadual de ensino situada na região central de uma
cidade no interior do Rio Grande do Sul. Os alunos envolvidos na experiência didática são da
faixa etária entre quatorze e dezesseis anos e vem de várias regiões da cidade para a escola.
1. A constituição do sujeito do discurso e sua relação com as práticas de
linguagem em sala de aula
A concepção de linguagem é um ponto central no que se refere ao ensino de língua em
sala de aula e é, como afirma Possenti (2011), antes de tudo, uma opção política. As
mudanças nos paradigmas de ensino de ngua se refletem na produção e circulação dos
materiais didáticos e na formação de professores. um movimento que data dos anos 1980
que buscava deslocar o ensino da gramática isolada para a perspectiva do texto. Nos anos
1990 essa revolução no ensino de língua passa a ser discurso oficial nos PCN’s e daí por
diante torna-se uma verdade a ser seguida (GERALDI, 2010).
Interessante notar que os livros didáticos têm se adaptado às emergências acadêmicas,
desde a década de 80 o ensino via texto é uma proposta amplamente divulgada, o professor,
no entanto, recupera no livro didático, de forma geral, apenas o conteúdo gramatical (cf.
CAVALCANTI, 2010). Ainda sobre a formação de professores, é possível encontrar
professores que trabalhem com a gramática com frases fora de contexto e usando o texto
como pretexto para retirar palavras e ensinar metalinguagem (cf. NEVES, 1991, LAJOLO,
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2009), tudo reflexo de uma concepção de linguagem, de uma escolha formativa, portanto,
uma questão da formação dos professores.
Na esteira da reflexão de Geraldi (2011) sobre as concepções de linguagem e sua
relação com o ensino de Língua Portuguesa, o entendimento de que a linguagem é
constitutiva dos sujeitos, como as teorias enunciativas defendem, faz com que o deslocamento
gerado no ensino dessa língua no Brasil seja de uma língua autossuficiente, posta sob um
prisma formal em aula, para a reflexão que inicia e é concluída com textos, que é língua em
uso, materializada.
Na perspectiva bakhtiniana, a língua como sistema socialmente compartilhado permite
que as enunciações existam, que a inexistência do sistema ou a invenção das convenções
formais a cada ato de enunciação seria impossível. Dessa maneira, a cada vez que enunciamos
a ngua que usamos é também e sempre de outro que nos antecede no tempo e que empresta
sentidos ao nosso ato de discurso. É uma maneira de língua e história se encontrarem no
contexto da enunciação.
Portanto, a questão levantada por Geraldi (2011) nos auxilia no sentido de perceber
que o sistema da língua é também importante para o estudo e a reflexão em sala de aula, visto
ser o sistema que permite a compreensão, mas a abordagem do ensino de língua se deslocando
da língua em potencialidade (a gramática) para a língua em uso (o enunciado, o texto
propriamente) apresenta um ganho para o aluno no sentido de não ser uma ngua fetichizada,
pois os textos usados em sala de aula advêm das diferentes esferas de atividade humana nas
quais o alunado circula.
Outra questão no que se refere à constituição de um sujeito do discurso via alteridade é
que “nossas consciências com diferentes palavras que internalizamos e que funcionam como
contrapalavras na construção de sentidos do que vivemos, vemos, ouvimos, lemos”.
(GERALDI, 2005, p. 22). Nessa acepção, as práticas de linguagem nas quais um sujeito
esteve imerso no passado constituem pontos de ancoragem em sua interpretação de atividades
de linguagem no futuro, a análise de dados a seguir apresentará esse ponto como uma chave
de leitura.
Ponto crucial no deslocamento produzido pela concepção de língua enquanto interação
entre sujeitos é que o ensino se desloca de um “ensinar o que” para um “ensinar para que” (cf.
GERALDI, 2010, p. 115-116). A pergunta “ensinar o que?” seria respondida com algum
conhecimento gramatical pontual (ex. concordância, regência, colocação, etc) e “ensinar para
que?” deveria trazer um objetivo do ensino, o que invalidaria a resposta com conteúdos
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gramaticais. O texto estaria, então, de ponta a ponta nas práticas de linguagem segundo a
concepção de produção de textos aqui discutida.
Nesse sentido, o aluno que ocupa os bancos escolares começa a ter um papel
destacado em seu próprio aprendizado, a linguagem é uma atividade constitutiva, da qual ele
se vale para valorar o mundo. O professor de português tem a missão de ensinar o aluno a
manusear os textos com competência, de modo que se torne um leitor/produtor de textos
capaz de enfrentar os desafios impostos pela sociedade. Osakabe (2011) discute que as
relações que o sujeito mantém com o meio o tornam sujeito do seu discurso, Ser sujeito do
discurso seria conferir a cada enunciado produzido a relevância identificadora que lhe dá tanto
um papel substantivo no contexto em que é produzido quanto confere uma identidade
específica ao seu enunciador (OSAKABE, 2011, p.26).
A reflexão desse autor dialoga, em muito, com o que vínhamos discorrendo sobre que
tipo de sujeito se estava delineando: um sujeito singular, irrepetível, inconcluso, imperfeito,
que produz textos singulares, enunciados irrepetíveis. O autor afirma que “compete a ele
[sujeito], uma função continuamente impertinente de constituir-se a cada momento num ser
pertinente” (OSAKABE, 2011, p. 26-27). Completa dizendo que o sujeito sofre uma “crise
permanente, [...] que se faz no embate contínuo contra sua própria estereotipização” (osakabe,
2011, p.27). Esse sujeito que está produzindo enunciações é incompleto por definição, ele
necessita de um “outro” para se tornar pleno, mesmo que o interlocutor seja virtual, um
interlocutor, relembrando o conceito bakhtiniano de alteridade.
Bakhtin (2009) difere unidades da língua das unidades da comunicação verbal,
afirmando que:
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de
formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato
psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal,
realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui
assim a realidade fundamental da língua. (destaques do autor) (BAKHTIN, 2009, p.
125).
Sendo a interação verbal o que constitui a realidade fundamental da língua, suas
unidades menores (fonemas, morfemas, palavras, frases...) não constituem enunciações. Se o
enunciado é a real forma de manifestação linguística, ele é irrepetível, do mesmo modo como
o sujeito que o profere, contrapondo-se às unidades da língua que se repetem, os enunciados
são únicos, pois dependem de uma situação de comunicação, de uma relação de interlocução,
de possíveis contrapalavras.
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Mais profundamente na arquitetônica bakhtiniana, nos deparamos com a teoria dos
gêneros discursivos. Bakhtin (2011) coloca que os gêneros são tipos “relativamente estáveis
de enunciados” (BAKHTIN, 2011, p.262), que obedecem a três elementos constitutivos, quais
sejam, o “conteúdo temático, o estilo e a construção composicional” (BAKHTIN, 2011,
p.262). Ao transpor para prática a reflexão de Bakhtin (2011) se pretende tornar a sala de aula
o lugar em que circulam esses gêneros, no qual os interlocutores dialogam com o foco de
entender qual a função do texto estudado e além de lê-los, escrevem e reescrevem textos desse
gênero. É necessário ressaltar que não estamos pensando em ensinar gêneros, o gênero é um
dos meios pelo qual pretendemos estabelecer o contato com a língua em sua materialidade,
em sua forma concreta (GIOVANI e SOUZA, 2014;2017).
Ao trabalhar com os gêneros discursivos, nos propomos a utilizar também as
sequências didáticas teorizadas por Dolz, Schneuwly et. Al. (2011). Os autores argumentam
que as sequências didáticas devem organizar-se da seguinte maneira: uma sequência de tantos
módulos quanto forem necessários, iniciada e terminada por produções do gênero. O objetivo
geral da sequência didática seria dominar a produção do gênero, para isso o trabalho do
professor seria trabalhar esse gênero, dando as possibilidades de produção através de leitura e
análise do texto. É bem verdade, ainda, que na escola tem-se produzido situações
comunicativas falseadas, como aquelas denunciadas por Lajolo (2009) e Neves (1991), nas
quais o texto se torna pretexto de ensino.
2. Metodologia: o paradigma indiciário
Ao nos propormos a analisar os dados singulares de quatro sujeitos envolvidos na
sequência didática aplicada, estamos observando esses textos produzidos com o intuito de
retirar dali questões como: qual a relação desses sujeitos com a leitura, com análise linguística
e com a questão da escrita.
Carlo Ginzburg, em vários de seus textos, apresenta esse modelo epistemológico
pautado em análises qualitativas de dados singulares, o paradigma indiciário. O método é um
percurso interpretativo, no qual o pesquisador procura pistas no objeto de estudo, fazendo da
singularidade desse objeto uma realidade complexa.
Exemplo do método é “O queijo e os vermes”, obra na qual Ginzburg interpreta
registros inquisitoriais, entre os quais manuscritos do julgamento, do inquérito e da sentença
de um moleiro julgado, condenado e morto que se chamava Domenico Scandella, mais
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conhecido como Menocchio, nascera em 1532, na Itália. Por meio desses documentos
encontrados pelo autor italiano é narrada pelos indícios a história de Menocchio, “a partir
desses documentos, [Ginzburg] faz uma reconstrução dos fatos, da cultura, da sociedade e
analisa, através das leituras realizadas por Menocchio, a grande influência da cultura oral e da
“cultura popular” nas interpretações que fazia(CAMPOS, 2011, p. 72).
Rodrigues (2005) diz que o paradigma indiciário é um método que não é rigoroso, no
sentido galileano, pois possui um
[...] rigor flexível, sensível aos sons, sabores e odores, onde rigor, sensibilidade,
intuição e técnica se combinam para chegar à verdade provável; que não é nem a
verdade dos positivistas, nem a impossibilidade da verdade dos céticos, nem o
relativismo pós-moderno. O que então daria aos fenômenos existentes a sua
consistência?O indício. (RODRIGUES, 2005, p.5).
A respeito da rigorosidade flexível podemos afirmar que são as possibilidades de
interpretação permitidas pelo método, todas elas lastreadas em provas, pistas, indícios,
pegadas. Também, Rodrigues (2005) traz o termo “verdade provável”, justificável, porque o
processo que nos propomos a construir aqui é de tecer uma hipótese sobre o que seria a
resposta mais provável, a possibilidade que os indícios nos levam a entender, para o
fenômeno que está sendo analisado.
É, à vista do que discorremos acima, que iremos trabalhar na seção seguinte, buscando
nesse corpus textual constituído de pistas que faremos a minuciosa análise dos pormenores
que contém a chave de decifração do mistério.
3. O contexto da sequência didática e o que as pistas revelam
3.1. A sequência didática
Constituída de 6 horas de prática de sala de aula, a sequência foi dividida em três
módulos de atividades, sendo que no primeiro
2
ocorreu uma atividade motivadora de leitura e
escrita de resumos para que os alunos entendessem o uso do gênero no dia a dia e no seu
contexto de circulação.
No módulo dois
3
, na primeira aula, os alunos leram três resumos de temas diferentes,
depois disso, foram elencadas as características dos textos, que foram anotadas no quadro
2
Constituído de uma hora/aula.
3
Constituído de quatro horas/aula.
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negro, processo mediado por perguntas feitas pelo bolsista
4
. Na aula seguinte, a turma leu o
texto O Horácio tem os bracinhos curtos e mesmo assim você gosta dele
5
e produziram o
resumo depois de uma conversa sobre o texto. Na aula posterior, o bolsista trouxe o texto com
anotações de melhoras, conversou sobre problemas que a maioria da turma teve e entregou os
textos propondo a reescrita. Na quinta aula a turma leu o conto “O homem nu”, de Fernando
Sabino
6
, após uma conversa sobre o texto, foi proposta a escrita do resumo do texto. No
módulo três
7
, como produção final, os alunos reescreveram o resumo do conto, depois das
observações dadas pelo bolsista.
3.2. Decifração dos mistérios
Para este estudo, levaremos em conta a produção final de quatro sujeitos, doravante,
S1, S2, S3 e S4 para fins de preservação das identidades. Os resumos produzidos por esses
quatro sujeitos, depois de passarem pelo processo de reescrita, serão analisados aqui.
Passamos agora a análise dos textos produzidos por eles.
Primeiro texto:
Fig. 1: texto produzido por S1.
A partir do que S1 escreveu podemos depreender algumas questões, como a atenção
que na primeira frase do texto embora incompleta - para criar o contexto do resumo. O
que chama bastante atenção no resumo que S1 produziu é que ele narra o conto todo de forma
mais curta. O uso da expressão “aí” no texto escrito que remonta ao uso nas narrativas orais.
Esse indício nos faz acreditar que esse sujeito fez essa escolha porque a cada vez que o
bolsista pedia a leitura de um texto, o começo da conversa pós-leitura era mais narrativo, para
depois chegar em um nível mais abstrato de análise. É provável, igualmente, que as frases do
4
Essas características foram observadas no texto, foi construído um quadro de referências via leitura e análise do
texto. Não foi dada nenhuma comanda com as características já prontas.
5
(SOUZA,CAVÉQUA, 2005, p. 108)
6
(FARACO, 2003, p. 42 43).
7
Constituído de uma hora/aula..
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resumo de S1 sejam tão longas por apresentar esse caráter de narrativa oral. Comprova essa
ideia, a repetição de “e” na penúltima linha do texto. Apesar disso, uma pessoa que não tenha
lido o conto que foi resumido consiga entender o resumo feito pelo aluno, o que é um ponto
positivo.
Segundo texto:
Fig. 2: texto produzido por S2.
No texto de S2 não existe a primeira frase que contextualiza o resumo, como S1 fez.
Pode-se observar o uso mais frequente de pontuação, no entanto, além de estar bastante
narrativo como o outro resumo, as frases se apresentam sem conexão entre uma e outra. A
leitura que esse sujeito fez do texto original foi em busca de frases importantes, ele as retirou
de lá, colocou-as no resumo com algumas alterações.
O bolsista notou isso na primeira escrita, indicou esse aspecto para uma mudança na
reescrita, ainda assim o aluno apenas copiou o outro texto e corrigiu os problemas gramaticais
que havia cometido. Não querer fazer essa revisão também é um indício de que, uma vez que
nas duas atividades foram indicadas revisão gramatical e textual. Possivelmente o sujeito
acreditou que a tarefa mais importante era a gramatical, deixando de lado a segunda.
A última frase do texto, situada nas três últimas linhas, está bastante complicada:
parece que as frases foram retiradas do conto e utilizadas no resumo, a falta de pontos finais
deixa o problema maior, parece ser uma única frase, é ambígua e dificulta o entendimento do
resumo. A frase que a antecede comprova o que foi dito antes, são extraídas partes
importantes do conto e elas servem para escrever o resumo. Aquele é o trecho no texto
original em que a personagem sai do apartamento do casal fica presa no corredor, sem roupas,
e, então, se toda a narrativa. Esse fato não consta no resumo. Seria impossível uma pessoa
que lesse apenas o resumo entendesse o conto sem lê-lo.
Terceiro texto:
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Fig. 3: texto produzido por S3.
Como o primeiro sujeito, S3 cria o contexto para o resumo, dizendo de que se trata o
seu texto. Instigante seria entender porque esse aluno resolveu mudar a história do conto que
narrava os “apuros” de um homem que ficou preso no corredor do prédio em que morava,
totalmente nu.
A ideia de tornar-se autor do seu discurso é uma concepção que foi levada a sério em
sala de aula, sendo que entre a escrita e a reescrita do texto, o bolsista leu o texto produzido e
indicou mudanças para tornarem o texto melhor. Uma dessas mudanças, que foi geral, era de
colocar-se frente ao texto com as suas palavras para resumi-lo, colocar-se realmente na
posição de escritor de um resumo e não na de repetidor do texto original. Presumi-se que a
intenção de S3 foi colocar-se nessa posição, escrever com suas próprias palavras, contudo, o
que ele fez descaracteriza o resumo, tornando-o uma reescrita do texto original, isto é, trocar
as palavras que o texto a ser resumido tem, transformando-o em outro texto.
As pistas deixadas nos levam a dizer que as ideias do texto original aparecem de forma
limitada nesse resumo. Da mesma forma que os últimos dois resumos, o texto de S3
apresenta características muito próximas da narrativa, dialoga com o primeiro no momento
em que emprega a expressão “aí” e também repete “e” muitas vezes na mesma frase,
assemelhando-se a uma narrativa oral, pelos mesmos argumentos levantados no comentário
daquele texto. Ao dizer que “causou todo o transtorno”, S3 escolhe por o contar tudo o que
ocorreu depois de o homem ficar preso no corredor, uma escolha bastante inteligente, visto
que esse aluno vinha narrando novamente o texto e contar todos os problemas que
envolveram a saída dele do apartamento descaracterizaria o resumo também, por serem
informações desnecessárias.
Quarto texto:
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Fig. 4: texto produzido por S4.
Sem ler o texto, à primeira vista, já se pode ter a ideia de que se trata de um texto mais
complexo, S4 faz bem a divisão dos parágrafos. Esse é um indício, uma pista de que se
trata de um texto com dois assuntos distintos. Na leitura se pode notar que é um texto
produzido por sujeito que tem uma relação diferente com a escrita e com a leitura se
comparando com os outros três analisados. Isso se nota principalmente no segundo
parágrafo.
Vamos analisar primeiramente o que foi escrito nas primeiras linhas. Novamente,
um contexto, uma primeira frase que uma ideia geral do que será colocado a seguir,
notemos que esse é o primeiro aluno que cita quem escreveu o texto resumido, antes o leitor
dos resumos não conhecia o autor do conto. Nas três linhas que S4 coloca sobre a narrativa do
conto está feito um resumo, coloca as principais ideias do texto original, de forma coesa e
coerente, ainda faz uma análise no restante do texto.
no segundo parágrafo, S4 faz uma análise profunda do texto. Extrai do texto até
mesmo a intenção do conto, pista que comprova a posição desse aluno, que é, provavelmente,
leitor assíduo. É sabido que aqui temos um sujeito que fez uso das memórias de outras leituras
e por isso torna seu texto um resumo tão bem acabado.
Considerações finais
Se entendermos a sala de aula de ensino de linguagem como o lugar de encontro de
vozes sociais, como um lugar no qual essas vozes todas se fazem escutar, dialogam, podemos
inferir observando os textos que produziram os quatro sujeitos que cada um deles tem uma
forma única e singular de ler e de dominar o texto, cada um deles coloca de forma singular o
que consegue entender do texto. É claro, também, entra em cena aqui uma série de outros
fatores, como por exemplo: Será que esses sujeitos haviam produzido um resumo antes?
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Será que eles liam textos em sala de aula? Será que, se liam, escreviam suas percepções sobre
os textos lidos?
Obviamente, se foi trabalhada a noção de se tornar sujeito do discurso e alguns alunos
apenas devolveram o que lhes foi colocado, ou ainda fizeram interpretações completamente
diferentes da proposta, algo por trás disso. Por exemplo, é uma hipótese forte que S1 e S2
venham de uma escola, de uma tradição de ensino de português que engesse o ensino apenas
na transmissão de metalinguagem. Em uma concepção que leva o texto como mote central de
estudos, o saber provindo de uma noção de gramática tradicional é deixado de lado, ainda que
seja ensinada a gramática, mas aprendida via texto, via materialidade da língua, via aplicação.
Então, mais importante seria explicar qual a função de um adjetivo dentro de um texto do que
saber classificá-lo de forma descontextualizada em frases soltas, ou pior, circulá-los em um
quadro com palavras soltas. Parece-nos que esses dois sujeitos entenderam que o gênero
resumo seria apenas retirar frases de um texto maior e torná-lo mais curto, mesmo que essas
frases fiquem sem nexo entre elas. Provavelmente, isso não ocorreria com sujeitos
acostumados a lerem, escreverem e analisarem textos, dado que, são tarefas que a prática
aperfeiçoa. Se o texto fosse levado para a sala de aula, realmente, como é colocado pelos
PCNs, desde 1998, o aluno chegaria ao ensino médio com plenas capacidades de trabalhar
com leitura, análise linguística e produção textual.
Vale lembrar que Bakhtin (2011) entende os gêneros do discurso como “correias de
transmissão da história da sociedade à história da língua.” (BAKHTIN, 2011, p. 286). Nessa
configuração, qual seria a possibilidade de o gênero estudado na sequência didática fazer
parte da história dos enunciados desses sujeitos? É aceitável que fizesse parte, pois, na
comunicação cotidiana se faz resumos seguidamente, quando se conta sobre um filme, sobre o
que fez no dia anterior e assim por diante. Claro, na comunicação oral, se tem um padrão de
formalidade menos elevado que na escrita, sendo assim o processo pelo qual os alunos
envolvidos teriam de passar era o de transpor o gênero mais ligado à oralidade para um mais
formal. Mesmo assim, notamos a dificuldade que os alunos apresentaram em realizar essa
tarefa. Possivelmente, seria mais demorado o processo de apropriação do nero resumo em
sua forma escrita por esses alunos.
Ainda, concebendo o enunciado como projeto histórico, que recebe influências do
passado do sujeito com suas relações de alteridade e de ideologia, não se podem desprezar as
extremas diferenças que apresentam os textos expostos acima. Enquanto um deles apresenta
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uma escrita e uma análise completamente condizentes com o que se expôs durante a
sequência didática, outros três não apresentam.
Os indícios observados pelo bolsista em sala de aula e retratados nos textos nos levam
a interpretar que o projeto de dizer desses outros três sujeitos está preso às grades de um
interlocutor que os faz calar frente ao objetivo da disciplina: a escola (OSAKABE, 2011).
Reflexo disso são as escolas em que o silêncio absoluto reina e que falar é um problema, lugar
em que se domestica e não se ensina em um processo de construção. O advento do trabalho
com o texto também corrobora com a noção de trabalhar a língua em suas potencialidades, e
até mesmo porque os gêneros são orais e escritos. As leituras que o último sujeito fez no
passado dialogaram com o texto que ele estava a resumir, isso fez com que seu produto final
fosse mais bem acabado. Não se nega que os outros sujeitos também tenham uma relação
intrínseca com vários outros enunciados, mas sua reflexão se tornou mais fragilizada
justamente por não terem um histórico maior de enunciados passados, principalmente
escritos.
Salientamos que o paradigma indiciário se mostra uma eficaz ferramenta para entender
os processos educacionais, uma vez que a maioria dos projetos de dizer apreendidos em uma
sala de aula não é tão transparente, embora pistas sejam deixadas a todo o momento.
Importante seria se os professores assumissem esse papel de investigador, que leva cada
pequeno vestígio em conta, que entende que cada rastro por mais insignificante que possa
parecer está carregado de informações preciosas sobre o que, quem e quando emitiu. Por
mais que o paradigma seja um estudo de rigor científico flexível, ele é uma metodologia que
se prova, trata-se de um caminho interpretativo que o observador constrói, também baseado
no seu olhar treinado.
Através do estudo dos textos produzidos se pode inferir que as concepções de ensino
das quais provêm esses quatro sujeitos são distintas, no percurso interpretativo realizado se
nota com clareza que os três primeiros parecem que foram recentemente apresentados ao
trabalho com o texto. Ainda não conseguiram, portanto, apresentar um rendimento
plenamente satisfatório, visto que esse projeto de ler, refletir e escrever textos é um processo,
necessita de adaptação.
Também, ressaltamos a necessidade de que o cientista ao ambiente escolar para
problematizar o que se faz lá, mas que não o faça, que leve as respostas que encontrou de
volta. De modo que universidade e escola estejam em constante diálogo, que a ciência não
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produza reflexões, que de cima para baixo são impostas via documentos oficiais, que ela
construa de dentro da escola para a própria escola.
Referências
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Fontes, 2011.
BAKHTIN, M.M. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Ed. Hucitec, 2009.
CAMPOS, C.T. de. O processo de apropriação do desenho à escrita. Dissertação
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DOLZ, J. SCHNEUWLY, B. et. Al. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e
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DUARTE, C. Uma análise de procedimentos de leitura baseada no paradigma indiciário.
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linguagem. Campinas, 1998.
FARACO, C.A. Português: língua e cultura. Curitiba: Base, 2003.
GIOVANI, F.; SOUZA, N. B. de. Bakhtin e a educação: a ética, a estética e a cognição. São
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GIOVANI, F.; SOUZA, N. B. de. O dado singular que ilumina o percurso: uma análise
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Diálogo das Letras, Pau dos Ferros, v. 06, n. 01, p. 304-323, jan./jun. 2017.
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